O doente sadio, um parodoxo?
Numa sexta-feira de manhã, vou ao hospital, dirigindo o próprio carro, para submeter-me a um exame de rotina, na área cardiológica. Terminado o exame, o médico diz que eu tenho de me submeter a uma cirurgia cardíaca logo na segunda-feira pela manhã e ali já fico internado. A minha filha mais velha, uma boa contestadora, não se conformando com o apressado diagnóstico, resolveu telefonar para um médico conhecido como “o papa da cardiologia de Alagoas”, pela comprovada competência na sua especialidade. Fez um breve relato do que estava ocorrendo, preocupada com a anunciada cirurgia, adiantando que aparentemente eu não tinha necessidade de submeter-me a esse risco. O médico, que nem nos conhecia, prometeu ir ao hospital para analisar a minha situação. Antes mesmo do horário prometido, ali compareceu com a sua equipe, composta de mais três médicos. Disse já ter visto os exames e ele próprio já havia convencido o outro médico de que não seria necessário partir logo para a cirurgia. Aconselhou fazer uma angioplastia, algo menos invasivo, pelo que concordamos e ficamos todos bem aliviados.
Na segunda-feira, o mesmo médico que havia feito o cateterismo na sexta-feira anterior fez todo o procedimento da angioplastia, implantando um stent na artéria obstruída, conforme sua própria constatação. Pelas normas da medicina, o paciente submetido a esse procedimento precisa de um acompanhamento intensivo durante pelo menos 24 horas, razão por que fiquei na UTI durante esse período. Na nossa cultura, uma pessoa que está na UTI significa estar passando mal, com um problema grave de saúde. Entretanto, eu estava ali totalmente diferente dos outros pacientes. Apenas cumprindo o repouso, sob a observação dos médicos e enfermeiros que ali mantinham o seu plantão, com quem tive a oportunidade de conversar bastante, principalmente numa madrugada em que um dos médicos fazia uns curativos numa paciente idosa. Acompanhei de perto o seu excelente trabalho, revelando a sua nobre missão, pois que o fazia com muita maestria, cantando enquanto trabalhava. Foi exatamente por isso que me encorajei a puxar um papo com ele, falando de um famoso médico alagoano, contemporâneo de Freud, com quem se correspondia, numa prova evidente de que sua passagem pela Europa enalteceu o nome de Alagoas. Ao abordar esse assunto, ele, na condição de médico, não era de estranhar que conhecesse muito mais do que eu sobre o seu colega de profissão. Fez um longo comentário a respeito daquele médico que viveu no início do século XX, cujo currículo honrou a medicina alagoana, razão do seu nome atribuído ao hospital. Por este relato, facilmente se pode deduzir o nome do hospital para onde me dirigir naquela sexta-feira, dia 23 de agosto de 2002. “Arthur Ramos”.
Confesso que, a partir daquela data, quando o médico me falou muito mais do que eu havia lido sobre aquele médico de Pilar, uma pequena cidade do interior, que se tornou grande com o filho ilustre, passei também a admirá-lo ainda mais e melhor compreender o motivo da merecida homenagem. Pela aula que recebi na UTI, além da aparência de sadio, também me mostrava alegre e feliz, ao ponto de algumas pessoas que apareciam no visor da porta perguntarem à minha família sobre o que eu estava fazendo ali, se estava todo risonho. Esse não é o estado de quem está numa UTI. Diziam nunca terem visto “um doente tão sadio”.