O único caminho a seguir

Começo essa história com um poema que diz mais ou menos assim

Aqui estou eu, ou melhor, o resto de mim,

O que sou? Pouco importa;

O que fui? Lhes direi neste momento;

Já amei, já sofri, caminhei por montanhas, percorri caminhos sinuosos,

Procurei dentro de mim algo realmente de valor,

Eu queria ser alguém e não algo diante do mundo,

Corri a largos passos para o futuro,

Oh eu tivesse escolhido certo mais não;

Do cigarro passei a maconha;

Do refrigerante ao álcool;

Da vida simples a inexistência;

Do amor ao ódio;

Tentei correr, mas na pressa deixei que minhas ambições atropelassem meus sentimentos e perdi até mesmo o significado da palavra mãe.

Pelas dores que eu senti, pelas poucas vezes que sorri, pelas belezas imaginárias que eu vi, por tudo de falso que sonhei, pelo falso mundo ao qual me entreguei, pensei ter encontrado minha felicidade, mas me enganei, pois os amigos me abandonaram, perdi o amor de meus pais e não pude jamais encontrar o amor de alguém.

Todos fugiram de mim até mesmo você...

Mas eu queria voltar, regressei ao meu Deus eu que no meu orgulho tolo julgando-me maior o desprezei.

Deixo que as lágrimas corram pela minha face na esperança de comovê-lo, esperando que alguém sem duvida mais humano me estenda as mãos, pelas mãos que eu recusei, pelo amor que eu perdi, e por tudo que julgava ter maior valor que você que tanto amava.

Por você que eu tanto amo e pelo bom Deus que nos ensina a viver, “o falso mundo das drogas, desmoronamento de meus sonhos”.

Inicio essa história narrando alguns fatos da minha infância:

Estudava num colégio público que era uma referência de escola padrão da época, sempre gostei de estudar, mas odiava educação física, tinha uma estrutura muito frágil por isso sentia uma dificuldade enorme de fazer certos esforços físicos, futuramente vim saber que era devido a um problema congênito de coração, por esse motivo era piada de certas colegas de classe.

Se tivesse algum jogo na escola eu ficava sempre na reserva e dificilmente jogava, quando jogava tinha que deixar que outros pegassem a bola no meu lugar, talvez esse tenha sido um dos motivos que me fizeram seguir por um caminho tão obscuro.

Foi um tempo difícil aquele, meus pais estavam se separando, minha mãe chorava constantemente, o último lugar que eu queria estar era em casa, o clima era muito pesado, estava terminando o ginásio e cheia de sonhos na cabeça. Estava prestes a começar uma nova jornada em minha vida.

1983 – Esse ano prometia grandes surpresa...

Era um começo de ano muito diferente, estava começando a cursar o segundo grau, escola diferente, turma diferente, enfim tudo novo para mim.

Eu estava cheia de planos comecei o curso noturno, seria a primeira vez que eu estudaria a noite. Queria começar a trabalhar, ganhar mundo, enfim alçar vôo, neste ano eu iria completar quinze anos, ainda estava desabrochando para a vida.

Nos primeiros dias de aula conheci uma turma bem diferente, eles não estavam nem aí para a escola, eram alegres, divertidos e o melhor, não me discriminava, nem faziam brincadeiras sem graça comigo, eles me respeitavam ou era isso que eu achava.

Estávamos sempre matando aula para fazer algo diferente, aquele seria mais um desses dias.

Éramos eu, Betinha e Cristina, saímos da escola antes do sinal de entrada tocar.

- Então gente, para onde iremos hoje? – Perguntou Betinha ansiosa.

- Vamos para o novo Shopping que inaugurou a pouco no Morumbi – Disse Cristina.

- Legal, fica pertinho de casa, assim poderei chegar na hora e minha mãe nem vai desconfiar.

- Que medo em Claudia que você tem da sua mãe! – disse Betinha.

- Você não tem a mãe que eu tenho, nem queira ter.

Minha mãe estava passando por momentos muito duros, acabava de se divorciar e tinha de começar do zero, pois sempre foi dependente do meu pai, fazia pouco tempo que havia arrumado um emprego e sentia agora o peso da responsabilidade de educar dois filhos, sozinha. Por esse motivo às vezes ela era muito dura, não admitia atrasos nem mentiras e era exatamente tudo que eu fazia.

Lá fomos nós rumo ao Shopping ficar mais um dia à toa.

Chegando lá presenciamos uma briga entre grupos rivais de roqueiros e punks, fiquei com medo no primeiro momento, mas depois relaxei afinal o que eu tenho a ver com isso?

Sentamos na praça de alimentação onde podíamos ver todo o movimento, não tínhamos um tostão no bolso, mas assim mesmo ficamos fazendo hora naquele local.

De repente não sei de onde nem como surgiu uns três punks à caráter e sem pedir sentaram na nossa mesa. Eram pessoas muito diferentes, a primeira vista chocavam, mas conforme a conversa fluía via-se que eram tão comuns como nós. O mais alto chamava-se Murilo, era moreno, cabelos cacheados e o mais falador do grupo, sentia-se muito a vontade mexendo no material que estava em cima da mesa, o outro era mais quieto talvez tímido, loiro de cabelos cacheados também, só observava, e por fim o encantador Calê, galante e irresistivelmente bonito.

Apesar de serem muito simpáticos, não me chamaram a atenção de jeito nenhum, Murilo falava sem parar e tentava me entreter com desenhos loucos que fazia no meu caderno, mas algo de novo estava prestes acontecer naquela noite que mudaria a minha vida para sempre.

Conversávamos todos sobre futilidades quando de repente surgiu ele, não sei o que aconteceu, mas eu perdi o prumo, fiquei fora do ar, quando vi aquela figura na minha frente foi como se eu o tivesse conhecido a minha vida inteira, só despertei desse torpor quando o ouvi perguntar ao Murilo:

- Então vai ou não vai me apresentar?

- Saí fora que eu conheci primeiro – disse Murilo retrucando.

Então sem pedir permissão sentou-se ao meu lado, pegou meu caderno e começou a esboçar um desenho.

- Já que não fomos apresentados, faço questão de me apresentar, meu nome é Rick e o seu?

Naquela hora não sabia o que dizer, queria me apresentar, mas ao mesmo tempo tive medo, afinal ele era punk e fazia parte daquele grupo que eu acabara de ver brigar.

- Eu sou Carla – menti

- Hum! Carla! Vou te chamar de Cacá posso?

- Você que sabe, pra mim não importa.

Estava tão encantada que nem percebi que minhas colegas já estavam em outra mesa com o Calê e com o Murilo.

O que estava acontecendo comigo, eu nem prestava atenção no que ele dizia, só fixava naqueles olhos negros, cabelos pretos em desalinho, uma visão de um Deus grego, pelo menos para mim.

As horas se passaram rápido e já era hora de partir, Calê acompanhou Betinha e Cristina, e eu fui embora com o Rick e com o Murilo, eles insistiram em me acompanhar até em casa.

De repente do nada o Rick pediu:

- Me dá um pedaço de chiclete?

-O que? Eu só tenho esse que eu estou mascando. - Disse eu.

- Pode ser a metade dele mesmo.

Fiquei chocada, mas mesmo assim ofereci o meu chiclete para ele, logo depois ele disse:

- Poxa que chato agora é você que ficou sem o seu chiclete.

- Tudo bem já tinha perdido o gosto mesmo.

- Vem cá, toma a metade dele de volta. Então neste instante para me dar a metade do chiclete ele me agarrou e me deu um beijo.

Eu simplesmente delirei, foi como se eu tivesse saído do corpo e entrado numa outra dimensão, flutuei e me vi completamente fora de órbita.

Foi na verdade meu primeiro beijo, portanto muito especial e fomos o caminho todo assim entre paradas e beijos.

Cheguei em casa completamente nas nuvens. Acordei meu irmão e contei tudo para ele,

Eu precisava desabafar com alguém, era uma ocasião muito especial, se pudesse soltava fogos para comemorar, meu primeiro amor.

Tudo correu como sempre, acordei cedo fiz os afazeres domésticos e passei horas imaginando se iria encontrá-lo outra vez. Decidi que iria matar aula de novo e ir para o mesmo lugar, só que desta vez sozinha.

Quando deu a hora de sair para a escola fui direto para o Shopping e como se já soubessem que eu apareceria lá estavam Rick e Murilo, no mesmo lugar da noite passada.

Desta vez ele me tratou como se já estivéssemos namorando, era um cavalheiro, me tratava com muito carinho, como se eu fosse de louça. Mas eu não queria passar a imagem de frágil, queria ser como eles, queria que me respeitassem e passei a imitá-los, na forma de vestir, no comportamento, enfim em tudo.

Fui muito bem aceita por eles, me tratavam como uma deles, quanto ao Rick o que mais fazia era me proteger.

Passei a fuma, beber, e a conhecer o mundo das drogas, o qual eu nunca havia imaginado que iria entrar. O Rick insistia que eu não devia experimentar, mas eu nem ouvia estava conhecendo outro lado que para mim parecia ser só de alegria.

Já havia passado alguns dias que eu não aparecia na escola e nem me preocupava com isso, estava vivendo outra vida, esqueci completamente que tinha família, deveres, obrigações, pensava só em como era bom ser essa nova pessoa.

Numa conversa que eu tive com o Rick ele me perguntou:

- Cacá, se eu te chamasse para ir embora comigo para o litoral, você iria?

Ele mal sabia como eu havia levado aquilo a sério.

Aquele dia seria um dia especial, encontrei-me com o Rick cedo e fomos para São Bento onde eu iria conhecer um novo grupo de punks que faziam um movimento no centro. Quando chegamos não encontramos ninguém e passamos horas vagando pelas ruas frias e cinzentas do centro de São Paulo. Como não encontramos nada lá, voltamos e fomos direto para casa do Rick. Lá ele trocou de roupa e pegou uma moto onde saímos e ficamos horas rodando pelo bairro. Nesse ínterim eu já havia decidido não voltar mais para casa.

Quando já estava de madrugada o Rick me perguntou se eu não queria que ele me levasse em casa, então eu entendi que só eu havia levado aquela proposta a sério. Senti um tremendo mal estar e pensei e agora o que fazer, resolvi levar a cabo meu plano de ir embora mesmo que fosse sozinha e disse a ele que não iria voltar.

Ele então me perguntou onde eu queria que ele me levasse. Pensei: “Na verdade eu queria ir embora com você!”, mas respondi: Pode me levar na casa de uma amiga em Itapecerica?

Chegando lá nos despedimos e está seria a última vez que eu o veria por um bom tempo.

Tânia era uma amigona de escola, havíamos feito a 8° Série juntas, achou loucura o que fiz e me convenceu de ligar para minha mãe dizendo onde eu estava. Deixei para ligar pela manhã, e não preguei o olho durante a noite toda. Pensava como eu pude levar aquele papo de ir embora a sério, não me conformava com a minha ingenuidade.

Pela manhã acordei e liguei para minha mãe, esta estava em pânico e furiosa comigo, disse que era bom eu aparecer logo, pois toda polícia estava atrás de mim e para completar meu pai também estava vindo para São Paulo. Nunca pensei que causaria tanto rebuliço por causa de uma noite fora. Soube ainda que o Rick foi lá para dizer que eu estava bem. Era doido mesmo.

Cheguei em casa e minha família toda estava reunida me esperando, todos querendo tirar uma lasquinha do meu martírio, minha avó me avançou e rasgou minha camiseta, parecia uma louca ensandecida, minha mãe não dava uma palavra, minha tia tomou a frente da situação e disse que havia mudado meu horário de escola para manhã até meu pai chegar e resolver o que faria comigo.

Senti-me julgada, condenada, sem a menor chance de defesa, precisava avisar o Rick do que estava acontecendo afinal eu nem sabia no que iria dar tudo isso e que negócio de polícia era esse que ninguém quis me dizer, resolvi arquitetar um plano para escapar e falar com ele, afinal eu me encontrava em cárcere privado.

Na manhã seguinte meu tio me levou para escola, assim que ele se foi imaginei que seria a chance perfeita para escapar e falar com o Rick, apesar de cedo fui direto para frente da casa dele, fiquei horas sentada esperando algum movimento para que eu pudesse falar com ele, mas nada, quando eu menos esperava apareceu naquele momento o carro do meu tio bem na minha frente, fiquei paralisada, sem ação nenhuma, estava acabado, sabia que agora não teria mais chance nenhuma de me comunicar com ele.

Cheguei escoltada em casa pelo meu tio, assim que entrei dei de cara com meu pai e com um investigador de polícia que estavam sentados na sala à minha espera.

Depois de muito conversarem decidiram que eu precisava sair de São Paulo, não me perguntaram nada, não soube de nada na época, ninguém falava comigo. Meu pai simplesmente falou:

- Vá arrumar suas coisas já que você vai embora comigo para o Rio de Janeiro.

Eu nem sei explicar o que senti, foi um misto de ansiedade com medo e tristeza, mas eu não estava em posição de discutir, afinal não iria adiantar nada eu apelar, eles já haviam decidido tudo.

Deixei minha casa, minha mãe aos prantos e tudo que eu tinha para trás, não quis nem me despedir.

A viagem parecia uma eternidade, pegamos sol, chuva, buracos e curvas, sem trocarmos nem sequer uma palavra, pouco antes de chegar meu pai parou o carro e me comunicou que eu iria encontrar na casa dele outra mulher, essa mulher viria a ser a prima da minha mãe.

Para falar a verdade não foi uma grande surpresa para mim, eu já esperava por isso, só que eu torcia para não ser verdade.

Ele morava em um apartamento perto de uma pedreira na Tijuca, era amplo com dois dormitórios grandes. Fui muito bem recebida pela Filó, afinal a conhecia desde o berço. Ela era dez anos mais nova que o meu pai e cheguei achar que a convivência com ela seria bem mais fácil do que eu imaginava.

Filó trabalhava em uma empresa de informática e estava para pedir demissão, meu pai por sua vez passava quase que todo o mês fora de casa viajando, ele era representante comercial de uma grande montadora de automóveis.

Meu primeiro dia no Rio foi estranho, tudo novo, logo de manhã Filó saiu para pedir demissão e meu pai para o escritório dele. Temendo que eu fugisse dali, me trancaram em casa e levaram a chave. Aproveitei para fazer diversas ligações telefônicas para Sampa, mas infelizmente nenhuma que eu pudesse me comunicar com o Rick. Fiz também o reconhecimento do local, vasculhei tudo que tinha naquele apartamento, encontrei muita coisa estranha como, por exemplo, seringas com as agulhas quebradas, vários vidros de éter, e muitos livros de magia negra.

Na verdade não me preocupei muito com as coisas que eu havia achado, só pensava em um jeito de poder trazer meus amigos para lá, principalmente o Rick.

O tempo foi passando e eu já havia me adaptado a nova vida, tinha um quarto só meu, estudava agora em um colégio particular, mas apesar de tudo não esquecia Sampa.

A Filó fazia tudo para se aproximar de mim, mudou meu visual, cortei o cabelo, passei a usar roupas mais justas o que acabava por me deixar mais sensual, e ela dizia para todo mundo que era minha irmã, pois o pessoal do condomínio não podia nem imaginar que ela e meu pai não eram casados, não podia nem chamar meu pai de pai em público.

Meu pai viajava e ficávamos sós, assistíamos a filmes até de madrugada, fazíamos alguns programas juntas, para falar a verdade eu até gostava dela, mas com o tempo ela passou a ter ciúmes de mim com meu pai e isso prejudicou muito nossa relação.

Na escola eu já tinha aquela turminha da pesada, continuava a fazer uso de drogas até mais do que antes, pois no Rio o acesso a drogas era mais fácil, saíamos na hora do intervalo para fumar maconha e eu sempre chegava em casa muito louca.

Meu pai que não tinha nada de bobo começou a observar meu comportamento e passou a me vigiar, pedia para Filó me levar e me buscar na escola, o que passou a tornar nossa aproximação mais do que impossível, eu não suportava ser vigiada e ela não suportava ter que servir de babá para uma garota de 15 anos, afinal ela parou a vida dela para isso.

Eu nunca havia conseguido esquecer o Rick, tudo me lembrava ele, o perfume que ele usava, os punks me lembravam ele, Sampa me lembrava ele, enfim era quase insuportável a falta que eu sentia dele.

Resolvi então que escreveria para ele e convidaria ele, o Murilo e o Calê para passarem uns tempos em casa, para meu pai não saber quem eram disse que eram amigos de escola que viriam para cá e precisavam de um lugar para se hospedar, ele por incrível que pareça concordou.

Pus as cartas no correio e esperei ansiosa por uma resposta, mas esta nunca veio. Resolvi que não tentaria mais, pois podia ser muito perigoso meu pai descobrir tudo.

Estava perto de eu completar 15 anos quando conheci Carlinhos, um amigo de trabalho da Filó, ele era jovem, tinha uns 22 anos, e era muito divertido. Uma noite ele pediu para o meu pai me deixar ir conhecer o Rio a noite, para minha surpresa ele deixou que eu fosse com ele, apesar de recomendar um monte.

Fomos a um bar dançante a beira mar em Niterói, achava tudo lindo, aquela noite pela primeira vez na vida passei a beber até não sentir mais o chão. Fui para casa completamente embriagada, meu pai quase teve um troço de me ver naquele estado e expulsou o Carlinhos de casa falando um monte.

Minha mãe sempre havia sonhado em me dar uma festa de quinze anos com tudo que uma garota tem direito, mas ao invés da festa, passei meus quinze anos só, absolutamente só.

Comecei a me sentir muito infeliz naquele lugar, queria desesperadamente voltar. Soube então que teria no Circo Voador a primeira festa Punk do Rio de Janeiro, teria que dar um jeito de estar lá, pensaria num jeito.

Passei a mentir cada vez mais para conseguir o que queria, pois sabia que com a verdade não teria chance nenhuma, passei a levar minhas amigas para dentro de casa com muito mais freqüência para poder ganhar a confiança de meu pai, porém elas eram tão loucas quanto eu.

Ficávamos a tarde toda no meu quarto ouvindo Rock e fumando um baseado.

Quando foi a véspera da Noite Punk no Circo Voador, convenci meu pai a me deixar dormir na casa de uma dessas amigas para estudar.

Fomos para casa dela onde eu me vesti a caráter, coloquei calça e camiseta preta com um emblema de caveira, coturno, jaqueta de couro preta, gel no cabelo, pulseiras de couro com rebites, enfim uma punk perfeita, pelo menos no figurino.

Chegando lá fiquei perplexa com os horrores que eu vi, um punk mijava em uma garrafa e tomava a própria urina, outros se esmurravam até sangrar como se estivessem se divertindo com isso, faziam apologia as drogas, usavam cocaína no meio da rua, uma loucura. Quando entramos no anfiteatro, havia uma banda punk tocando Ramones, era uma das músicas que o Rick gostava, senti saudades, fiquei ali parada só viajando no som quando de repente ouvi:

- Não acredito no que eu estou vendo! Não pode ser! Você é a Cacá Punk mesmo?

Dessa vez quem não acreditava era eu, isso parecia irreal, na minha frente aparecia como num sonho, Calê, que alegria eu senti naquele momento, foi indescritível o prazer que eu tive de reencontrá-lo. Ficamos ali curtindo por um tempo, quando de repente ele falou:

- Vamos sair fora daqui para podermos conversar, aqui está muito barulho.

Concordei e fomos até o mirante. Chegando lá ele começou falar:

- Me conta como você veio parar aqui? – perguntou

- Pra falar a verdade nem sei o que estou fazendo aqui, simplesmente vim contra vontade, meu pai me trouxe para cá por causa de uma noite que eu passei fora de casa.

- Ah! Brincou! Isso é motivo para tanto?

- Na cabeça deles sim. Mas me diga uma coisa? E o pessoal como está? O Rick, Murilo, Fabinho... – Estava ansiosa para saber deles.

- Estão todos bem, o Rick se mudou da Chácara, o Murilo e o Fabinho continuam por lá. – Disse sem muito entusiasmo.

- Mudou pra onde? – perguntei

- Quem sabe é o Murilo. E você sabe onde a gente pode descolar “unzinho” agora?

Percebi que minha investigação sobre o Rick não ia fluir e decidi deixar pra lá.

- Sei sim, o que você prefere fumo ou pó? – Sabia onde e com quem arrumar drogas no pedaço, pois havia lá perto uma boca que todos conheciam e não era difícil comprar.

- Olha a mina, quem diria hein? Já está até inteirada das bocas aqui.

Fomos até a boca e não demorou saímos de lá com uma pacoteira de maconha e dois gramas de pó. Passamos a noite fumando e cheirando.

Cheguei em casa pela manhã e fui direto para o meu quarto, me sentia completamente sem força, precisava dormir mais estava muito ligada para isso. Baixou-me a maior depressão. Senti falta da minha mãe, como eu queria estar perto dela agora.

Meu encontro com o Calê na verdade não rendeu muita coisa, pois passamos a maior parte do tempo nos drogando e não conversamos muito. Comecei a percorrer um caminho muito perigoso, ainda nem sabia o que estava por vir.

Estávamos indo para Sampa, eram minhas férias de escola, iria passar duas semanas com a minha mãe, estava muito feliz e ansiosa, mataria a saudade de casa e teria a oportunidade de encontrar o Rick que eu jamais havia esquecido.

Minha mãe também havia mudado de casa, estava morando em um apartamento em outro bairro, mas estava trabalhando no Shopping Morumbi, que maravilha pensei, não podia ter escolhido lugar melhor para trabalhar.

Minha mãe trabalhava o dia inteiro e eu pude ficar sozinha com a minha liberdade pela primeira vez depois de muito tempo. Como tinha muito tempo livre fui conhecer as pessoas que moravam por ali. A primeira pessoa que conheci foi um rapaz chamado Ricardo, que morava no andar de cima do da minha mãe, ele passou a me apresentar para a turma dele, todos moravam por lá. Naquela tarde mesmo tive a minha primeira experiência transcendental, estávamos todos na casa do Ricardo, eu, Gisele, Silvio e Duvaldo, estávamos ouvindo Raul Seixas quando o Ricardo entrou trazendo um pano embebido em benzina e todos passaram a cheirar. Comecei a sentir um torpor e vi o Silvio se jogar no chão se contorcendo todo, pensei, esse cara tá passando mal, mas ao mesmo tempo eu também não estava muito bem, começamos a conversar e eu ouvi nitidamente a vitrola falando comigo, e eu resolvi responder, não sei o que falei, mas vi o braço da vitrola arrancar a minha boca e podia ver minha boca deslizando pelo chão, subindo pela parede e se atirando da janela, por pouco não fui atrás dela, pois nesse momento todos estavam perplexos olhando para mim.

Cheguei em casa e passei o resto do dia deitada ouvindo Pink Floyd, conforme eu ouvia o som sentia a minha cama subindo até o teto, como se fosse me esmagar na parede. Foi uma experiência muito apavorante.

No outro dia resolvi que iria descobrir onde morava o Rick, arrumei a casa para minha mãe e fiquei de encontrá-la no Shopping para fazermos algumas compras, fui mais cedo para ver se encontrava algum dos punks.

Chegando ao Shopping fui direto para a praça de alimentação que era onde sempre nos encontrávamos, logo vi o Murilo com o Fabinho como sempre no mesmo lugar, fiquei radiante com aquele encontro, nos abraçamos, e fui logo contando minha vida no Rio, o encontro com o Calê, a falta que eu senti deles, tínhamos muito para falar e pouco tempo para matar a saudade, depois de colocar a conversa em dia perguntei:

- E o Rick? Cadê ele?

- Tava demorando perguntar. – Disse o Murilo – Ele está muito bem. Pra falar a verdade ele recebeu a sua carta e deu muita risada com ela.

- O que? Risada por quê? – Perguntei um tanto decepcionada.

- Sei lá meu, esquece o Rick, ele não te merece.

Senti uma ponta de ciúme naquela resposta e resolvi não ligar.

- Soube que ele mudou e você sabe para onde? – Falei já perguntando.

- Ele mora na Washington Luiz, conhece? – Disse sem muita vontade.

- Legal depois você me anota o endereço.

Ficamos ali até dar a hora de a minha mãe sair e fui ao encontro dela.

No dia seguinte acordei ansiosa para encontrar o Rick, afinal o lugar que ele morava não era tão longe de onde eu estava. Esperei minha mãe sair. Arrumei-me e fui a pé até o endereço que o Murilo havia me dado.

Era um sobrado verde antigo, o número era aquele, parecia que não tinha ninguém, bati palma até que um senhor de meia idade me atendeu, perguntei pelo Rick e ele me disse que ele estava dormindo, aproveitei e falei que eu não era daqui e tinha vindo do Rio somente para vê-lo. Ele me fez entrar e esperar na sala enquanto acordava o Rick.

Era a primeira vez depois daquele fatídico dia que eu iria vê-lo, estava ansiosa na expectativa desse encontro. Haviam-se passado alguns minutos que para mim pareceram uma eternidade e de repente apareceu no alto da escada aquela figura com a qual eu não cansava de sonhar, senti meu peito estremecer.

Ele me tratou muito bem, falou daqueles dias, não mencionou a carta, mas não tinha mais aquele brilho nos olhos, estava feliz de poder olhar para ele, mas ao mesmo tempo triste por saber que eu não tinha sido tão importante para ele como ele foi para mim.

Não houve beijo, nem tão pouco a esperança de que pudesse voltar a ser como era. Fui embora com o coração partido. Primeiro grande amor e primeira grande desilusão das muitas que a vida ainda me reservava.

Chegando em casa encontrei o pessoal reunido combinando uma festinha particular a noite, mas eu estava tão para baixo que nem me animei a ir. Fui dormir cedo, chorei muito aquela noite, era a primeira vez que eu sofria por amor.

Adormeci, e no meio da madrugada ouvi batidas na minha janela, fiquei assustada, mas me enchi de coragem e abri, era o Duvaldo com uma garrafa de vinho na mão.

- Vim te buscar, só falta você, tá todo mundo lá atrás, pula aí. - Disse baixinho.

Resolvi que não adiantava nada eu ficar ali chorando, me lamentando por quem nem estava aí para mim, falei então:

- Espera só eu trocar de roupa e já vou.

Passei a chave na porta, coloquei um lençol no rodapé para que a luz não passasse e troquei de roupa, logo depois pulei a janela e já estava bebendo vinho com o pessoal, nessa altura da madrugada chegou um rapaz chamado Duda com um copo na mão dizendo que era chá de cogumelo, todos quiseram experimentar. Tive medo, pois minha experiência com a benzina não tinha sido muito boa. Vi todos ficarem muito loucos e eu só como expectadora, resolvi voltar para casa, pedi que o Duvaldo me ajudasse a entrar de volta pela janela, qual não foi meu susto quando ouvi minha mãe batendo na porta bem na hora que eu pulei para dentro.

Corri e coloquei a calça do pijama por cima da roupa que eu estava e abri a porta pela metade torcendo para ela não entrar, fiz a maior cara de sono.

- Porque essa porta estava trancada? – Perguntou

- Sei lá, fechei sem pensar. – Tentei disfarçar e falar o mais longe possível dela.

- Então deixa aberta. – Falou e se foi.

Ufa! Essa foi por pouco. Pensei.

Já estava pronta para voltar para o Rio dessa vez sem ligar para mais nada, não queria mais ficar perdendo tempo sonhando com o impossível.

Voltei e fiz um trato com meu pai, se eu passasse de ano voltaria para São Paulo.

Passei a pegar leve com as drogas e com a bebida, me dedicava exclusivamente aos estudos na ânsia de voltar o mais rápido possível. Queria tentar de novo. Talvez estando mais perto eu possa reconquistá-lo. Decididamente eu não conseguia esquecê-lo.

O ano demorou a passar, mas finalmente chegou, era final de ano e eu passei com ótimas notas, estava pronta para voltar.

Cheguei a São Paulo e decidi que aquele começo de ano eu iria arrumar um emprego e estudar. Matriculei-me em uma escola particular no curso de secretariado, estudava de manhã, e a tarde arrumei um emprego no Shopping Morumbi. Não precisava trabalhar, mas queria estar o mais perto possível do Rick sem levantar suspeita.

Não era fácil conciliar os estudos com o trabalho, acordava 5 horas da manhã para entrar as 7horas na escola, saía as 11:30 e entrava no serviço às 13 horas e saía ás 22:00 horas, isso de segunda á sexta-feira, sábado eu entrava as 8:00 e saía as 20:00, só me sobrava o domingo para descansar, sem falar que eu chegava em casa por volta das 23:30 e ainda tinha que arrumar as coisas para o dia seguinte, isso sem falar nos dias de prova que eu dormia só umas três horas por noite. Mas mesmo assim eu achava que valia a pena todo o sacrifício.

Sempre no intervalo para o café na loja eu dava um jeito de escapar para fumar um, já dava na cara que eu era uma viciada. Foi numa dessas vezes que eu vim a conhecer o famoso “rebite”.

Uma droga sintética que fazia com que você agüentasse passar horas acordado sem cansar, era tudo que eu precisava na época para suportar a jornada que me era imposta.

Nessa altura eu já estava me viciando em “pedras” também.

Foi um tempo de descobertas e loucuras.

Freqüentava muitos shows, danceterias, bares... conhecia muita gente.

Uma vez conheci um grupo que pertencia a um motoclub, tipo os “Hells Angels” com suas Harley Davidson, foi nesse tempo que jurei nunca mais subir em uma moto.

Foi numa tarde de domingo que nos encontramos no Parque Ibirapuera, naquela época existia o chamado “circuito das motos”, também foi lá que eu conheci a famosa mistura de cerveja de latinha com sal e limão, achei uma delícia, descia pela minha garganta como água.

Depois de algumas latas estava pronta para me aventurar no circuito, bem, meus reflexos estavam péssimos, mas não iria conduzir a moto mesmo, então tudo bem!!!

Lá fomos nós, a cada volta a moto inclinava mais, já estava vendo meu joelho arrastar no asfalto, o som dos motores era ensurdecedor, minha cabeça rodava junto com as motos, numa dessas voltas meu joelho roçou no chão e eu joguei o corpo para o outro lado desequilibrando assim a moto.

Foram frações de segundos quando vi meu corpo estirado de um lado e o do meu condutor do outro.

Fomos levados as pressas para o postinho do parque e de lá conduzidos ao pronto socorro.

O saldo foram dois joelhos ralados, pontos no braço e cotovelo, e uma mão quebrada, além de muita dor no corpo inteiro, e quanto ao meu amigo condutor, por incrível que pareça, só levou ponto no queixo.

No dia seguinte eu parecia uma múmia toda enfaixada.

Assim que pude fui fazer uma visita a esse amigo meu, ele estava melhor do que nunca, por fim quis me levar de moto para casa, imagina!!! Fui de ônibus mesmo.

Nunca mais subi numa moto até o dia de hoje.

Quanto ao Rick, descobri com o tempo que ele estava namorando uma garota que trabalhava na frente da loja que eu trabalhava, por curiosidade passei para vê-la de longe, ela era linda, loira de cabelos longos, alta, magra, parecia um modelo fotográfico, fiquei arrasada, senti que não teria nenhuma chance, fui para a área de jogos eletrônicos e lá estava ele, lindo como sempre, me aproximei e puxei conversa, ele estava absorto no jogo e só falava em monossílabos, até que apareceu ela e abraçou-o por trás, logo os dois saíram abraçados e eu fiquei ali olhando de longe.

Como fui burra, como pude me fazer tanto mal por causa dele!

Apesar de amá-lo resolvi deixar ir, afinal ninguém é de ninguém, como eu poderia querer obrigá-lo a gostar de mim.

A vida continuou e resolvi que ali não era mais possível ficar, afinal eu queria era esquecer e nada como recomeçar em outro lugar. Nesta época estávamos nos mudando para a periferia de São Paulo.

Realmente foi um novo começo, pessoas novas, casa nova, emprego novo, estava deixando o passado para trás em busca de um novo rumo. Minhas primas moravam no mesmo prédio e saíamos juntas direto, foi numa dessas vezes que eu soube o que realmente havia acontecido na época em que fui para o Rio. Fiquei sabendo que na época a polícia estava investigando uns traficantes e deduziram que os punks que eu andava estavam envolvidos até a tampa com eles, passaram a segui-los e acharam muito estranho eles quererem uma menina tão nova andando com eles, ficaram sabendo também que estava para chegar uma remessa de drogas da Argentina e que eu supostamente seria parte do pagamento dessa mercadoria.

Fiquei pasma, não acreditei no que estava ouvindo, será verdade?Perguntava-me. Mas resolvi não procurar saber afinal isso tudo ficou no passado.

Resolvi pegar mais leve com as drogas e passei a beber mais, achava que era menos perigoso, afinal não queria ter problemas com a polícia.

Bebia todos os dias, logo cedo já estava no bar tomando Martini antes de ir trabalhar. Cerveja? De 15 para cima. Já não sentia nem se fazia efeito.

A vida na periferia é bem diferente, as pessoas só têm o bar como distração. Passei a ser uma freqüentadora assídua, todas as noites eu chegava do serviço e já ficava por lá mesmo, só ia para casa de madrugada. Na noite conheci pessoas de todos os gêneros, punks, roqueiros, pagodeiros, traficantes, ladrões, matadores de aluguel, enfim de tudo.

Sempre tive mais amigos homens, pois acreditava que as mulheres nutriam certa rivalidade entre si, até hoje acho isso. Numa ocasião meu irmão me apresentou um amigo que sentia uma espécie de admiração pela minha pessoa. Por incrível que pareça se tratava de um Rick também. Ficamos muito amigos, tínhamos muito em comum, passávamos horas conversando sobre tudo, e passamos a nos ver constantemente. Ele era uma pessoa muito sofrida, foi expulso da casa do pai e vivia sem um porto seguro para pousar. Era uma pessoa muito bonita tanto por dentro como por fora e eu acabei por me afeiçoar a ele. Não era paixão, mas tinha muito carinho por ele, talvez pela sua história de vida. Ele estava sempre em casa.

Certa vez chegando do serviço fui abordada na portaria pelo segurança do condomínio, ele disse para eu me cuidar, pois haviam deixado um recado de que eu estava com os dias marcados para morrer.

Não entendi nada, não tinha brigado com ninguém, não tinha inimigos, não devia nada, entretanto estavam querendo acabar comigo, fiquei tensa, na verdade tive muito medo, quem poderia querer me ver morta? Passei a andar aterrorizada, estava em pânico.

Na noite seguinte contei ao Rick o que estava acontecendo e ele estranhamente me deixou falando sozinha e foi embora correndo, parecia furioso. Desconfiada recorri ao meu irmão e perguntei:

- Qual é o mistério? O que é que está havendo que eu não sei? Estou sendo ameaçada de morte por alguém e nem sei o motivo, falei pro Rick e ele saiu desembestado, o que é que estão me escondendo?

Meu irmão conhecia coisas sobre o Rick que eu nem desconfiava, para começar ele morava com um homossexual que tinha verdadeira obsessão por ele, o nome dele era Zeca e pelas características físicas descritas pelo meu irmão, foi o mesmo que deixou o recado na portaria.

Fiquei possessa, me senti traída pelos dois, e decidi que iria resolver tudo aquela noite mesmo. Fiz com que meu irmão me levasse até onde morava esse Zeca. Era um lugar ermo, uma casa velha, com aspecto sujo e bem escuro. Não pensei duas vezes e fui logo entrando, assim que abri a porta presenciei a discussão entre o Rick e o Zeca, que ao me verem ficaram sem reação.

O Zeca era uma figura estranha, tinha cabelos avermelhado, um jeito bem afeminada e uma enorme pinta sobre os lábios, me fuzilou com o olhar e falou em tom cínico:

-É por causa dessa vagabunda que você quer ir embora? Ela virou sua cabeça, ninguém vai cuidar de você como eu.

Nessa hora eu resolvi intervir:

- Espera aí, vagabunda não, você não me conhece e não tem o direito de se dirigir a mim desse jeito, muito pior ameaçando de morte.

- Quem eu? Não sei do que está falando. - Falou com o maior descaramento.

- Olha aqui, vou deixar bem claro uma coisa, não tenho e nem pretendo ter nada com o Rick, somos apenas amigos, não precisa se sentir ameaçado por mim.

Nessa hora senti que havia jogado uma baldada de água fria na esperança que o Rick tinha de um dia ficarmos juntos, senti muito, mas precisava ser verdadeira, não existia a menor possibilidade de termos algum relacionamento mais sério, eu não o amava, e se tem uma coisa que eu prezo em mim é não trair meus sentimentos. Desse dia em diante o Rick começou se afastar. Em compensação o Zeca começou a se aproximar de mim.

Ele era muito engraçado, fazíamos várias festinhas particulares na casa dele, regadas de bebidas e drogas de todos os tipos. Foi em uma dessas orgias que eu conheci o Kinho. Ele era um Don Juan, me enchia de elogios, de mimos, de presentes, e fazia muito bem para o meu ego. Ele estava sempre me fazendo surpresas. Não sei se foi por carência, mas acabei por me envolver, ele fazia com que eu me sentisse valorizada e protegida.

Não sabia nada sobre ele, a não ser o que ele falava e eu lógico, acreditava. Ele dizia que era dono de uma agência de automóveis e que logo iria me apresentar para a família dele, por esse motivo eu nunca desconfiei de nada, ele me dava presentes caríssimos.

Numa ocasião eu estava desesperada por ter queimado o secador de cabelo da minha mãe, ele disse: ”Não se preocupe a noite eu te levo um”. Não acreditei, mas ele me trouxe um secador profissional e ainda com um monte de acessórios. Deu-me vários relógios Cartier legítimo de vários modelos, e os passeios eram os mais variados, velejávamos, acampávamos, eu realmente estava adorando.

O tempo passava e nada do Kinho me apresentar a família, muito menos me levar no local que ele trabalhava, isso começou a me incomodar, afinal qual era o mistério.

Já fazia alguns anos que eu não sabia nada dos punks, eu realmente havia me desligado deles, mas de vez em quando ainda lembrava com carinho daqueles tempos. Certo dia ao abrir um jornal sensacionalista muito popular da época, deparei-me com a notícia de um rapaz que havia levado cinco tiros no rosto, aquela reportagem me chamou a atenção, comecei a ler e qual não foi a minha surpresa ao identificar o rapaz como sendo o Murilo, aquele que eu havia conhecido e curtido junto há tanto tempo. Fiquei muito triste e chocada.

A morte brutal do Murilo mexeu muito comigo e passei a meditar mais sobre o caminho que eu estava percorrendo. Fui até o Shopping ver se eu conseguia entender melhor o que tinha acontecido, mas não encontrei mais ninguém. Voltando para casa me deparei com um amigo do meu irmão que conhecia aquele pessoal. Ele me contou que o Murilo estava com AIDS e por esse motivo já não ligava para mais nada, ele havia se afundado nas drogas e passou a roubar para tê-las. Soube também que o Fabinho havia morrido algum tempo antes de AIDS, mas quanto ao Rick não soube nada, não quis perguntar.

Voltei para casa e passei um tempo meditando sobre a minha vida até ali. Mas que nada, assim que anoiteceu, lá estava eu novamente, bebendo e curtindo a noite. O Kinho estava viajando a negócios e eu continuei freqüentando a casa do Zeca. Quando o Kinho voltou foi me buscar para irmos a uma boate, a certa altura do caminho fomos abordados por três carros que fecharam a rua, mais do que depressa o Kinho deu ré e voltou cantando pneu, eu só consegui ouvir um estampido e o vidro do carro se estilhaçando inteiro. Fiquei aterrorizada, meu corpo tremia inteiro sem parar e eu só conseguia ouvir o barulho das balas que passavam bem próxima do meu ouvido.

Assim que escapamos da perseguição, Kinho estacionou e eu fui logo perguntando o que foi aquilo, o motivo daquela fuga alucinada. No início ele tentou me enrolar mais depois acabou contando que se tratava de uma dívida que ele tinha com aquelas pessoas.

- Você vai me explicar direitinho que tipo de dívida é essa que tem que pagar com a vida. – Disse eu apavorada.

- É melhor você ficar fora disso e não saber nada, eu prefiro não te envolver. – Falou ele apreensivo.

- Como não me envolver, eu acabo de levar vários tiros pelas costas, poderia estar morta, já estou mais que envolvida, além de tudo eu detesto armas, tenho pavor de violência. – Eu realmente nunca passei por esse tipo de coisa e estava super descontrolada, não parava de tremer.

- Você tem medo de armas é! Pois saiba que você está sentada em cima de uma 9 mm. – Disse ele rindo.

- O que? Você só pode estar brincando comigo. É melhor me levar para casa.

Cheguei em casa ainda muito assustada, assim que entrei no condomínio dei de cara com o Zeca, pedi que ele me acompanhasse até em casa para me esclarecer algumas coisas, afinal foi ele quem me apresentou o Kinho.

Encostei o Zeca na parede e pedi que ele não me escondesse nada, me dissesse tudo que ele sabia em relação ao Kinho.

Bem, para começar ele nunca teve uma agência de carros, ele vivia de contrabando de armas as quais eram distribuídas para os “pés de pato”, isso é, matador de aluguel. Ele estava envolvido até o pescoço com trafico e contrabando.

Fiquei possessa com o Zeca, como ele deixou eu me envolver com um tipo desses, que amigo era ele afinal, e agora como sair dessa. Ele era apaixonado por mim, e se eu terminasse era capaz dele querer me matar. Passei a ter muito medo dele, principalmente de andar com ele.

Eu deixei de sair com ele dizendo que preferia ficar em casa, sempre dava uma desculpa, uma noite ele saiu da minha casa e pouco tempo depois estava tocando a campainha de novo, pensei: “O que será que ele esqueceu?”, qual não foi minha surpresa ao abrir a porta e dar de cara com uma mulher endoidecida que berrava dizendo ser esposa dele.

- O que significa isso? Perguntei

- Ele não te falou que era casado? Esse vagabundo tem família e filho. – Gritava a mulher.

Eu olhava para ele e não via reação nenhuma, ele ficava ali de cabeça baixa como se fosse manipulado por ela. Na hora fiquei indignada com aquela reação tão covarde dele.

- Eu realmente não sabia de nada, peço desculpas e te garanto que eu nunca mais me aproximarei dele, e quanto a você Kinho nunca mais me apareça por aqui.

Tranquei a porta e deixei os dois discutindo. Na verdade aquele fato veio bem a calhar, afinal eu não sabia como terminar com ele.

Os dias passavam e ele não deixava de me perseguir, implorava para voltar, dizia que iria se separar, mas eu não queria nem saber. Passei a me esconder quando ele aparecia.

Comecei a me sentir muito cansada da vida que eu estava levando, queria estabilidade, principalmente emocional, precisava achar um porto seguro, queria deixar de viver daquele jeito, por mim mesma passei a pegar leve, tanto nas drogas como na bebida.

Mas existia um vazio muito grande, e era esse vazio que me fazia fraquejar e voltar a querer preenchê-lo, para isso eu recorria as mais diversas drogas. Eu sabia que estava auto destruindo-me, mas eu me drogava para anestesiar a dor.

Apesar de tudo eu nunca deixei de estudar e trabalhar, já estava formada em Comércio Exterior e trabalhava na área, ganhava muito bem, mas o dinheiro todo era gasto em noitadas. Se eu tivesse economizado um pouquinho poderia ter um carro do ano na época.

Estava no bar em frente do condomínio com o pessoal de sempre quando começou uma queima de fogos que todo ano tinha na AABB, um clube perto de casa, resolvi ir até lá ver, a subida era puxada, de repente senti uma sensação estranha, como se meu coração fosse parar e antes de terminar a subida eu desmaiei.

Acordei com todos a minha volta. Todos falavam ao mesmo tempo.

- Será que foi droga?

- Não acho que foi excesso de bebida.

- Mas ela estava tão bem. Acho que foi queda de pressão.

Ouvia tudo, mas não conseguia dizer uma só palavra. Fui levada ao hospital onde passei por uma bateria de exames e constatou-se que era um problema no coração. Fui encaminhada ao Instituto de Cardiologia Dante Pazanezzi. Comecei então uma maratona de exames um pior que o outro. Lembro-me de um exame no qual introduziram uma sonda pelo meu nariz até o coração e passaram a dar choques para que o coração acelerasse, para mim foi um dos piores que eu havia feito até então.

Saindo o resultado dos exames constatou-se que era um problema congênito, porém raro, o nome era tão complicado quanto o problema, tratava-se de uma Síndrome de Wolf Parkinson White, mais conhecida como WPW.

Claro que isso não me impediu de continuar levando a mesma vida de sempre. Eu não me sentia diferente apesar do episódio do desmaio.

Passado algum tempo voltei a sair constantemente à noite, adorava a noite, como dizia uma música do Raul Seixas, eu era da noite a companheira mais fiel que ela queria, apesar dos perigos que a noite trazia eu tinha uma verdadeira fascinação por ela.

Devido ao susto que eu dei em todo mundo, minha mãe fez com que meu irmão sempre me acompanhasse, mal sabia ela que ele era tão louco quanto eu. Fui apresentada ao pessoal dele, e sinceramente adorei conhecê-los. Eram pessoas bem humoradas, alegres, de bem com a vida. Não levavam nada a sério, esses sabiam viver. Viviam fazendo excursões, reuniões na casa deles, curtiam shows.

Passei a deixar o bar, para acompanhar esse pessoal, era muito bom fazer coisas diferentes a cada dia. Eles eram todos Hippies, bicho grilo, curtiam rock, faziam artesanato, adoravam assuntos esotéricos e viagens transcendental, amavam a natureza. Para mim era um mundo novo, completamente o oposto do que eu tinha vivido até agora. Mas, por outro lado, a droga continuava rolando solta.

Alguns deles eram músicos e viviam fazendo show pelo interior a fora, e lógico, eu sempre os acompanhava. Eu tinha muita afinidade com dois deles, o Diabo Loiro e o Da Terra. Nós estávamos sempre os três juntos, eu passava horas conversando com eles sobre a essência da vida, enquanto o Da Terra tocava “Senhorita” do Zé Geraldo para mim. Nosso retiro espiritual era uma prainha entre Bertioga e Guarujá, era conhecida como prainha preta. Estávamos sempre acampando por lá.

Num feriado de carnaval, eu estava em uma festa da Empresa onde trabalhava meu irmão que, a certa hora da noite, meu irmão deu a idéia de irmos naquele instante encontrar o pessoal que já estava na prainha, eu topei na hora. Foi uma experiência assustadora. Fomos pelas pedras, pois era madrugada e a trilha estava muito escura, era noite de lua minguante, então ficava mais escuro do que de costume. As pedras eram muito escorregadias por causa do sereno da madrugada, a certa altura do caminho eu escorreguei e fiquei pendurada em um abismo, meu irmão segurava a minha mão com toda força, mas eu não tinha onde me apoiar para sair de lá, de repente como por milagre apareceu, não sei nem como, nem de onde, um rapaz trazendo algumas tábuas de madeira, assim que nos avistou correu e colocou uma das tábuas como base para que eu pudesse me apoiar e sair do abismo, depois foi embora pedindo para que eu tomasse mais cuidado. Ficamos ali, eu e meu irmão, os dois pasmos, deitados nas pedras até passar o susto. Passamos um dia maravilhoso na companhia de nossos amigos e de noite voltamos pela trilha, apesar da escuridão.

Engraçado como a vida é, tem pessoas que entram na nossa vida para fazer realmente a diferença. O Da Terra foi uma dessas pessoas, com jeitinho ele me convenceu a deixar de consumir tanta droga, passei realmente a me afastar aos poucos e por incrível que pareça eu já não usava com freqüência. Porém continuava a beber muito, desta vez não era mais cerveja, eu só bebia destilado, principalmente Uísque, e fumava muito também. Sempre que eu passava mal, acordava com o Da Terra do meu lado, cuidando de mim.

Várias vezes fomos ver o sol nascer na praia. Ficávamos sem ter o que fazer e dava um estalo: “Vamos embora agora para baixada ver o sol nascer?” e lá íamos nós, de madrugada, descer a serra em busca de emoções. Às vezes chegávamos tão “loucos” que dormíamos ao relento, na areia mesmo, até o amanhecer.

Numa dessas vezes estava com uma gripe muito forte, fiquei com uma febre tão alta que cheguei a delirar, mesmo assim eu não perdia uma noitada.

O tempo foi passando e minha gripe não sarava, passei a emagrecer muito, não sentia fome, só fumava, comecei a ter uma tosse que não passava nunca. Pensei que fosse pigarro por causa do cigarro, mas com o tempo passei a ter acessos de tosse e queimação no estômago. Certa noite estava com uma queimação terrível no estômago e tive um desses acessos de tosse, senti que iria vomitar e corri para o banheiro, qual não foi o meu susto quando passei a vomitar sangue, era sangue puro, não tinha nada mais além de sangue e pior não conseguia respirar. Estava na hora de procurar um médico.

Na manhã seguinte resolvi ir até o hospital, acendi um cigarro e logo em seguida cuspi sangue, fiquei com medo, e joguei o cigarro longe. Chegando ao hospital relatei o ocorrido e fiz um exame de sangue, estava tudo certo segundo o médico, disse que era uma gastrite hemorrágica e que eu deveria fazer uma dieta e tomar antiácidos. Fiquei mais tranqüila.

Mas que nada, cada dia eu ficava pior, com mais tosse e emagrecendo a olhos vistos, não conseguia comer e tão pouco fazer atividades que antes faziam parte do meu cotidiano como, por exemplo, varrer uma casa.

Houve uma noite que foi fatídica, eu havia passado em claro sentada com a cabeça apoiada no peito sem conseguir respirar, era a única posição que eu conseguia puxar o ar, sinceramente eu não sei como não morri sufocada. Pela manhã fui levada ao hospital onde me internaram as pressas. Começava então a minha queda ao mais fundo que um ser humano já chegou.

Fui internada com o diagnóstico de pneumonia dupla, pois na verdade ainda não sabiam o que eu tinha. A principio fiquei em uma enfermaria onde você presencia tudo quanto é despojo humano, como o ser humano não é nada, como num hospital você fica a mercê da bondade alheia, como você fica impotente perante a falta de saúde. Estava ao lado de uma mulher que estava com uma úlcera varicosa aberta, a infecção era tão grande que exalava o cheiro fétido do ser humano em estado de putrefação, aquilo me enojava e ao mesmo tempo me deprimia.

Ao mesmo tempo em que eu observava o que ocorria a minha volta, um enfermeiro tentava a todo custo enfiar uma agulha na minha veia, ele tentou várias vezes, nem sei o quanto eu fui furada, mas me lembro perfeitamente às dores que aquilo me causava, pois eu já me encontrava carne e osso. Naquela mesma noite me trocaram de leito, quando acordei percebi que estava deitada no lugar da senhora com a úlcera na perna, quando perguntei por ela descobri que havia falecido durante a noite. Fiquei indignada de terem me colocado na cama de uma pessoa que acabava de morrer, mas hospital público é assim mesmo, tinha que me conformar.

Passado o final de semana fui transferida para um quarto, ainda não sabiam o que eu tinha, por esse motivo não existia nem a possibilidade de ter alta. Eu estava tão debilitada que não conseguia mais nem levantar do leito para ir ao banheiro. Durante a noite eu tive uma parada respiratória, quando dei por mim estava cercada de médicos e com tubos no nariz, percebi que eu havia sido ligada ao oxigênio. Todo dia voltava o enfermeiro para trocar a agulha, pois o calibre das minhas veias eram muito fino e por esse motivo estouravam com facilidade, o que fazia com que eu tivesse que passar pela sessão de tortura todos os dias, às vezes até mais que uma vez por dia. Continuava a tomar coquetéis de penicilina, os quais não surtiam o menor efeito, fazia sessões diárias de raio “x” sem mudança alguma.

Meus familiares, não digo minha mãe nem meu irmão, mas sim os maledicentes, procuraram os médicos para dizer que eu era uma viciada em drogas, o que abriu um leque de possibilidades, uma delas era a de ser AIDS o que eu havia adquirido.

Meu estado só piorava, uma auxiliar de enfermagem novata chegou ao quarto desligando o oxigênio e pedindo que eu me levantasse para tomar banho, disse a ela que eu não conseguia, mesmo assim ela insistiu e levantei-me, nessa hora eu tive uma parada cardíaca e por pouco não precisaram me colocar em coma induzido, levei choque com o desfibrilador, várias vezes até voltar. Nesse mesmo dia me injetaram penicilina pura na veia, o que é inviável, pois a penicilina tem que ser diluída no soro antes de injetar na veia, com isso ganhei também uma flebite (inflamação na veia do braço ). Meu martírio não tinha fim, os médicos não sabiam o que fazer, estava se esgotando todas as possibilidades, meus exames de HIV todos deram negativo, foram refeitos três vezes para não ter dúvidas de erro.

Minha mãe me via todos os dias e era a que mais sofria, os médicos já haviam me desenganado, dizendo a ela que não tinha mais o que fazer, tudo dependia agora do meu organismo reagir aos medicamentos o que não estava acontecendo. Eu estava num estado tão frágil que me colocaram em um isolamento, lá só podiam entrar de máscara. Eu ficava incomunicável, não tinha nem janela, parecia mais uma prisão. Foi nessa hora que eu me senti um nada, tinha muito tempo para pensar no que eu havia feito comigo, meu arrependimento gerou um vazio muito grande e pela primeira vez em minha vida eu me lembrei de Deus, lembrei que só algo maior poderia me tirar dessa, eu não sabia orar, mas sabia que ele existia, porém, nunca havia me dado conta de quanto eu necessitava dele. Com humildade no coração pedi que ele me enviasse uma luz, que de onde ele estivesse olhasse por mim. De repente a porta se abriu e apareceu um rapaz miudinho dizendo ser um ministro da palavra de Deus, só de lembrar ainda me arrepio, pediu que eu deixasse que ele orasse por mim e passou a falar em línguas estranhas, para mim aquilo foi muito místico, e pela primeira vez eu consegui dormir sem acordar durante a noite.

Na manhã seguinte a médica entrou no meu quarto dizendo:

- Pode se alegrar, pois seus dias aqui estão contados. Descobrimos o que você tem.

Fiquei perplexa, pedi ontem e já recebi.

- O que eu tenho? – Perguntei ansiosa

- Você está com tuberculose e vamos começar já o tratamento certo e em breve você terá alta.

Tuberculose, doença dos boêmios, como nunca pensei nisso, eu já havia lido vários casos, Beethoven foi um dos famosos que no passado morreu dessa maldita doença, mas em pleno século vinte, morrer de tuberculose é quase impossível. Mas por incrível que pareça foi o que quase aconteceu comigo.

Tive alta e pela primeira vez pude me olhar no espelho, estava magérrima, pele e osso, cheguei a pesar 38 quilos, parecia uma aidética em fase final, realmente estava muito feia. Fiz o tratamento por seis meses como previsto e me recuperei bem, não podia mais fumar nem tão pouco beber, fui forçada a me tornar careta, mas era isso ou minha vida.

Passado um ano minha vida era outra, trabalhava em um escritório pequeno, não tinha mais amigos, todos me abandonaram, mesmo assim continuei firme, sem drogas, sem cigarro, sem bebida, sem amigos. Mas isso me tornou mais forte, a única pessoa que continuou do meu lado e acompanhou todo meu martírio foi o Da Terra, ele não se importava com a minha aparência, e tão pouco com a minha mudança de vida, esse sim esteve do meu lado para o que desse e viesse.

Um ano havia se passado sem maiores intercorrências, meu irmão que agora morava no sul viera passar o natal conosco, ele iria acampar com o Da Terra, naquela mesma noite de natal comecei a passar mal. Não quis assustar ninguém por isso eu me calei, mas a sensação de falta de ar foi aumentando e não pude mais evitar, fui até o pronto socorro. Disse a todos que era só uma indisposição, não queria acabar com a viagem deles. Na verdade, também achei que não seria nada grave, mas qual foi a minha surpresa ao ouvir que eu seria de novo internada. Dessa vez tive ainda que colocar um dreno no pulmão, pois constataram que eu estava com um pneumotórax (ar no pulmão) e isso fazia com que eu não respirasse. Imagine só, pronto socorro no feriado, ninguém sabe o que fazer com você, fui internada na enfermaria, depois fui para um quarto, me ligaram no oxigênio e ninguém dizia nada, um dos médicos plantonista dizia que eu tinha uma fistula no pulmão e precisava ser operada, outro dizia que era seqüela da tuberculose, outro ainda dizia que era a própria tuberculose que havia voltado, enfim, ninguém sabia era nada. Passei o ano novo internada, ouvi os fogos e me desejei um feliz ano novo, que o próximo seja melhor que esse.

Passada as festas de fim de ano tudo volta ao normal, graças a Deus por isso, pois os médicos retornaram aos seus postos e pude realmente saber o que eu tinha, e surpresa! Nem o especialista sabia. Ele então resolveu trocar o dreno, que horror, foi a experiência mais dolorosa pela qual passei em toda minha vida. Entraram duas enfermeiras no quarto juntamente com o médico, me viraram e sem anestesia nenhuma, me introduziu um dreno no pulmão, meu grito foi de dor intensa, ecoou pelo hospital inteiro, quase desmaiei de tamanha dor, para piorar o dreno virou dentro de mim e espetava o meu peito me causando imensa dor. Mas para minha surpresa deu certo. Em cinco dias tive alta e me encaminharam para um tisiologista, médico de tuberculoso, e marcaram uma tomografia de pulmão.

Fiquei muito bem por alguns meses, minha tomografia segundo o tisiologista não apareceu nada, a não ser a pneumotórax que eu ainda tinha, porém ele não deu muita importância.

Dessa vez foi no meu trabalho, comecei a sentir uma falta de ar muito grande, quis me enganar pensando que poderia ser gases, mas, no fundo sabia que algo estava errado.

Cansada desse tormento me ajoelhei no chão e pedi a Deus que me poupasse ou me levasse, pois o sofrimento era muito grande, eu sabia que a culpa era minha mesmo, fui eu que nunca liguei para nada, não me conservei, não cuidei desse que seria o templo do meu espírito, me deixei levar pelas leviandades da vida. Achei que eu estava sendo grande, que era adorada pelas loucuras que fazia, mas que nada, na primeira queda todos me abandonaram. Estava só e com muito medo. O preço a pagar estava sendo muito caro. Pedi a Deus uma direção, um único caminho a seguir. Senti-me reconfortada e com mais coragem. Resolvi então que iria procurar o médico e pedir que avaliasse direito minha tomografia. Eu havia trabalhado nesse hospital por quatro anos e conhecia todos, o hospital se encontrava em greve e fui levada ao diretor que era casado com uma amiga minha, esse por sua vez me levou a um especialista em cirurgia torácica. Seu nome era Dr. Rogério, assim que o vi senti uma segurança que não tinha sentido nos outros médicos, ele analisou a minha tomografia e disse:

- A tuberculose deixou muitas seqüelas nos seus pulmões, eles estão cheios de caverna, e várias partes estão com fibrose, por isso a falta de ar. Você tem um pneumotórax espontâneo devido à fibrose, seu pulmão não expande mais.

- O que o senhor quer dizer Doutor? Cavernas? - Perguntei curiosa.

- Deixe-me explicar: os bacilos da tuberculose criaram cavernas no seu pulmão, ele parece um queijo suíço, os lugares que não tem cavernas têm cicatrizes que são as fibroses, por serem de tecido duro o pulmão não consegue expandir, digo inflar como uma bexiga.

- Isso é grave Doutor? – perguntei espantada.

- Não é comum, o seu pulmão esquerdo está pior, teremos que recorrer à cirurgia para ver o que é possível salvar. Farei uma raspagem nas fibroses, mas só podemos saber o real estrago depois que abrirmos, antes é impossível fazer qualquer previsão.

Ele tinha uma firmeza que me transmitia segurança, senti que pela primeira vez estava nas mãos certas.

Engraçado eu sentia nitidamente que estava sendo guiada pelas mãos de Deus, pede e receberás, ore e eu te responderei, Deus estava comigo. Não me sentia mais só.

Fiz todos os exames pré-operatórios, seria operada no hospital que eu fiquei internada com tuberculose, só de imaginar já me dava calafrios, os horrores que sofri naqueles tempos, pelo menos seria operada pelo Dr. Rogério.

No dia de ser internada, fui com muito medo, já havia criado o hábito de falar com Deus todo o dia, precisava coragem e força e que ocorresse o melhor conforme a vontade do Pai.

Para minha surpresa não havia vaga. Então soube que o Dr. Rogério havia me arrumado uma vaga em um hospital referência de São Paulo, o qual ele fazia parte da direção, não era um hospital público, mas ele dizia que tinha mais condições para esse tipo de cirurgia que exigia internação na UTI e muito mais aparelhagem, por eu ser uma paciente cardíaca (eu já havia me esquecido desse detalhe) isso era imprescindível.

Novamente foi a mão de Deus, tive certeza, agradeci mentalmente, várias e várias vezes.

Fui internada uma semana antes da cirurgia, para ser preparada devidamente, nada podia dar errado, estava confiante, o próprio Dr. Rogério que iria me operar isso me confortava mais.

Dr. Rogério era um médico muito atencioso, visitava-me todos os dias, mesmo no fim de semana e feriado, me explicava como seria essa cirurgia, os riscos que eu iria correr e como estava prevista a minha recuperação, enfim me esclarecia tudo. Eu seria operada numa terça-feira, mas no dia chegou uma emergência e minha cirurgia foi mais uma vez adiada para o dia seguinte.

À noite me deram calmante para dormir, mas o efeito foi contrário, passei a noite em claro, não preguei o olho.

Pela manhã já estava preparada para ir à sala de cirurgia, pedi a Deus que guiasse as mãos dos médicos e que me livrasse de qualquer mal.

Chegando perguntei pelo Dr. Rogério, um dos médicos da equipe dele, Dr. Alberto, disse:

- Ele já está subindo. Você está bem? Quer alguma coisa?

- Sim. O Dr. Rogério prometeu que eu não iria sentir dor, é só o que peço. – Falei apreensiva.

Neste instante chegou o Dr. Rogério.

- Prometi e cumprirei. Você não vai sentir nada. Faremos o possível para salvar o seu pulmão. – Disse confiante.

Naquele momento aconteceu uma coisa que eu achei inusitada, todos da equipe se uniram em oração. Logo depois veio o anestesista e introduziu uma seringa na minha veia, não foi nem um décimo de segundo e apaguei.

Tudo era escuridão, não sentia nada além de um sono profundo, passei a ouvir vozes, alguém me chamava, era uma mistura de sons, uma hora ouvia a voz da minha avó, outra a voz dos médicos em desespero, às vezes a voz era suave. Tentava acordar, mas meus olhos estavam pesados, tentava abrir, mas não conseguia. Ouvia minha avó dizendo:

- Vamos filha, acorda, volta.

Como podia ser isso, minha avó estava a quilômetros de distância, como ela podia estar me chamando. Ouvi em seguida os médicos.

- Rápido, vamos perdê-la.

Conseguia sentir a ansiedade deles, o desespero, e ainda por cima sentia eles me tocando, mas não sentia dor.

Era uma sensação boa, eu estava como se flutuando, senti uma paz enorme. De repente ouvi aquela voz suave, não vi ninguém, não tinha corpo, só voz, e falava dentro da minha mente:

- Não é hora ainda, volta.

No mesmo instante abri os olhos e não senti minha respiração, entrei em pânico, tentava respirar e não conseguia, comecei a me debater, eu estava amarrada. Foi quando tiraram de uma vez o tubo que estava na minha garganta e me estabilizaram.

Fui direto para UTI, o anestesista não saía do meu lado, e eu fiquei acordada o tempo todo, pois tinha medo de dormir e entrar em coma. Ele dizia:

- Pode dormir agora, está tudo bem.

Lutei contra o sono até não agüentar mais e por fim dormi.

Ao despertar notei que estava ligada a vários aparelhos, assim que me viu acordada o médico da UTI se dirigiu ao meu leito e perguntou:

- Até que enfim despertou, que susto você nos deu hein?

De que susto ele estava falando? O que aconteceu que eu não sei? Apesar dos aparelhos eu me sentia normal, quase normal, estava faminta.

-Está sentindo alguma coisa? – Perguntou o médico.

-Sim. – respondi – Estou sentindo muita fome.

Ele sorriu e falou para a enfermeira:

- Manda uma comida pastosa, ela está bem.

- Pastosa? Eu queria mesmo é um PF (prato feito como é conhecido aqui em São Paulo).

Após o almoço, recebi a visita do meu médico, só então fiquei sabendo que já fazia cinco dias que eu havia feito a cirurgia e infelizmente não correu como deveria, mas apesar de tudo eu estava viva, foi o que ele disse.

Soube então que eu havia perdido o pulmão esquerdo, ele estava totalmente necrosado, não havia mais o que fazer.

Minha recuperação foi rápida apesar de tudo.

Pelos prognósticos médicos eu deveria andar com uma bomba de oxigênio diariamente, pois o pulmão direito também havia sido lesado, mas que nada, Deus foi tão misericordioso comigo que hoje passados dez anos sou uma pessoa absolutamente normal.

Nesses anos tive dois filhos desafiando as possibilidades que eram mínimas de que eu pudesse vir a ser mãe.

Nunca mais usei qualquer tipo de droga, nem cigarro, nem bebida, enfim nada que possa prejudicar a minha saúde, estou limpa, tanto de corpo como de alma.

Passei a viver intensamente cada momento da vida para não desperdiçar essa segunda chance que Deus me deu, só que hoje eu vivo com qualidade.

Procuro sempre passar essa minha experiência principalmente aos jovens que como eu na sua ingenuidade querem ganhar o mundo, alçar vôos inimagináveis, mas o preço a pagar é sempre grande.

Sei hoje que a minha vitória se deve única e exclusivamente aquele que por muitas vezes é deixado de lado por causa das vicissitudes do mundo, mas que sempre está pronto a nos socorrer na hora da angústia.

Ele, “DEUS” é o único caminho a seguir.

Escrito por Claudia Humpel – Dedicado aos jovens que tem como maior problema as drogas.

“Aquele que vier a mim jamais o lançarei fora...”

Khumpel
Enviado por Khumpel em 16/09/2008
Reeditado em 30/09/2014
Código do texto: T1181123
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2008. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.