O Pirão Insosso
O ano era 1957, quando eu ainda estava no início da adolescência. Pouca chuva, pouco pasto, mesmo nas barbas do rio São Francisco, pois ainda não havíamos despertado para a irrigação. Precisávamos salvar o nosso pequeno rebanho, após termos apelado para a derruba, a palma, o mandacaru e até a macambira, todas já em completa escassez. A derruba consistia em cortar os galhos das árvores mais frondosas, como o juazeiro, a imburana, o quipembe, entre outras típicas do sertão, para que o gado pudesse comer as folhas caídas no chão. O chamado pasto rasteiro é o primeiro a acabar com a estiagem prolongada, a tão conhecida seca no sertão do Nordeste.
Já diziam que quando o ano é ruim de chuva, chove por parte. Um pouquinho aqui, outro pouquinho ali e em algum lugar absolutamente nada. Tendo conhecimento de que do outro lado do rio, num lugar chamado Mandacaru, a umas três léguas de distância, havia chovido um pouco mais, o meu pai resolveu levar o gado para lá. Para isso teria de atravessar o rio, usando a canoa. Como na nossa região só havia a canoa de pequeno porte, a travessia se dava com o gado nadando. De pouco em pouco, em repetidas vezes, atravessamos todo o nosso rebanho. Para lá nos dirigimos com a esperança de um breve retorno, quando São Pedro resolvesse mandar uma chuvinha também para o nosso Cardoso.
Lá a pastagem rasteira já estava acabando, precisávamos complementar com a derruba. Enquanto isto alguém precisava cuidar também da comida das pessoas, afinal não era só o gado que precisava comer. Sem nenhuma experiência em cozinha, fiquei sozinho numa casinha de roça, cedida por um conhecido do meu pai. Pela primeira vez, me vi na obrigação de preparar a comida não só para mim, mas para os que estavam cuidando do gado, o meu pai e o irmão caçula. Baseado nos apetrechos disponíveis, resolvi fazer um pirão de carne, que nem lembro se era de bode ou de boi. Sabia que os vaqueiros vinham famintos, após um trabalho pesado, como é a derruba. Chegaram acompanhados de mais uma pessoa, justamente o dono da casa onde fiquei. Agora era a minha vez, queria mostrar a minha habilidade de cozinheiro. A carne já estava cozinhada. Precisava então fervê-la para preparar o pirão. Assim o fiz e preparei os quatro pratos, incluindo aí o do visitante. Ao prová-lo sentia que estava frio. Não entendia a razão, já que havia saído do fogo naquele instante. A sensação de frieza não era a da temperatura, era a falta de sal. Achei que tinha feito tudo direitinho, mas esqueci do principal. Não havia quem conseguisse comer aquele pirão tão insosso, nem mesmo a fome servia de tempero. No dia seguinte, preferi inverter a situação, deixar o irmão ainda menor para cuidar da comida e eu ir para a costumeira derruba.
Com o passar do tempo, os açudes ou pequenos barreiros foram secando. Assim, além do ardiloso trabalho da derruba, ainda tínhamos de conduzir o gado para o rio, a uma légua e meia de distância, para beber água. Somando ida e volta, imaginem a caminhada. Íamos a pé, tanto quanto o rebanho.
À noite, naquele pequeno mundo, distante de tudo e de todos, tínhamos tão-somente a companhia da natureza. Sem luz elétrica, contando apenas com o candeeiro, o firmamento fica mais brilhoso. As estrelas formam um grandioso espetáculo. Pena que naquela época ainda me faltava um pouco da veia poética para melhor usufruir a beleza do universo. É por isso que quando vou ao sertão, na esqueço de contemplar o firmamento, nas belas madrugadas.
Hoje, onde era o Mandacaru, que me emprestou todo o cenário deste capítulo, está o Projeto Apolônio Sales, onde a irrigação deu lugar ao progresso da agricultura sertaneja, produzindo não só para o mercado local, mas exportando os mais diversos produtos agrícolas. A Petrolândia de hoje nem parece com a Petrolândia dos meus tempos de adolescência. Também pudera! O ano mencionado no início indica o decurso de meio século. Não seria justo se não houvesse acompanhado o progresso. Recorreria agora ao fast food, ao self service para não ter de enfrentar o pirão insosso.