O Mineirinho e Dodge Dart
Ainda em Propriá, na condição de solteiro, morava numa pequena república formada por três funcionários da empresa. Dois radiotelegrafistas e um agrônomo, este um mineiro de Uberaba. A minha condição ainda não permitia possuir um carro, o mais simples que fosse. Fazia algumas economias, já pensando no casamento que não demoraria acontecer, planejado para o ano seguinte, pois havia deixado a noiva em Petrolândia. O colega já possuía um fusquinha, muito bem zelado, o seu primeiro carro. O agrônomo, pela sua melhor condição, possuía um carro melhor e resolveu trocá-lo por uma Dodge Dart, o carrão da época.
Morávamos bem próximos do local de trabalho, não mais que cem metros. Não precisávamos de carro nem para a escola ou o cinema, nem mesmo para o porto das balsas, o ponto preferido de quem gostava de apreciar uma boa paisagem, contemplando a beleza do São Francisco e o andamento da construção da ponte que uniria Sergipe a Alagoas. Um tradicional bar e restaurante à beira do rio atraía para ali grande parte da sociedade, principalmente à noite, em que predominava a presença da juventude após o encerramento das aulas.
O mineirinho, com aquele seu carrão, saía a passear pela orla do rio, ao longo de uma balaustrada onde os jovens se encostavam para os eventuais namoros. Gostava de dar as suas paradinhas, saía do carro com a chave rodando no dedo, deixando a porta escancarada, numa verdadeira demonstração de exibicionismo. Coisa de jovem que cedo conquistou status. No bar, onde mais demorava, deixava o carro a uma distância e posição que lhe permitisse ficar olhando. Estava ali o seu maior bem de consumo. Tinha ciúme de que alguém nele se encostasse.
Dirigindo pela cidade, onde as ruas estreitas e pequenas não lhe davam a ousadia de aborrecer da velocidade, comportava-se elegantemente como um bom cavalheiro e um responsável motorista. Entretanto, ao enfrentar a estrada, fazia questão de testar a potência do seu carrão, que poderia chegar a 200k/h. Não podia ver outro carro a sua frente que já queria ultrapassá-lo. Dizia que na frente dele só outro Dodge Dart com um motorista mais doido dentro. Essa fama se espalhou de tal forma que as pessoas rejeitavam carona que ele oferecia quando ia a Aracaju, a cem quilômetros de distância.
Pela sua popularidade, um sujeito educado, com fama de dominar o inglês, chegou a ser professor no colégio em que eu estudava contabilidade. Assim, embora por um curto período, fui também seu aluno. Morando na mesma república, trabalhando na mesma empresa embora em profissões diferentes e ainda sendo seu aluno, não deixava de me convidar para os passeios de finais de semana. Na maioria das vezes eu apresentava alguma desculpa, evitando sair, até porque a minha condição financeira era outra. Mas, não dava para fugir todas as vezes. Aracaju, a capital, era a sua opção. Quem mora no interior sempre deseja pegar uma praia.
Um belo sábado, juntamente com o outro colega, topei a parada e fomos os três, mesmo com aquele temor da velocidade em que ele costumava dirigir. Era uma manhã tranqüila, sem muito movimento na estrada, levando aquele papo sobre família, cada um de nós distante da sua e eu ainda pensando noiva, conseguimos até fazer com que ele se esquecesse de apertar o pé. Portanto, velocidade normal, sem maiores problemas. O dia correu às mil maravilhas para o matuto. Praias, barzinhos, restaurantes e parques no final, de maneira que o retorno só ocorreu à noite. Como sempre a bebida era muito moderada, ninguém se excedia. Ele, o homem do volante, havia tomado algumas doses de campari, a sua bebida preferida. Mas, isto logo cedo, o efeito já havia passado. Não se podia atribuir ao álcool a ousadia de querer bancar o herói da velocidade. Era o instinto da jovialidade e de quem ainda era novo no volante, sem muita consciência do perigo. Ao sair da cidade, tão logo pegamos a pista, senti um friozinho na barriga quando vi o ponteiro passar dos 150k/h. Nunca tinha andado naquela velocidade, até porque em Petrolândia ainda nem havia asfalto, ninguém ia fazer isto numa estrada de barro, mesmo que o carro permitisse. Encostei a mão no ombro do colega que ia ao seu lado, no banco da frente, e fiz um gesto para que ele convencesse o empolgado motorista a diminuir a velocidade. O perigo era iminente por ser de noite, em que a visibilidade é menor. Se ele já ia àquela velocidade a lógica era que alcançaria outros carros na estrada. Achava então que tinha a obrigação de ultrapassá-los. Apertava cada vez mais o pé, aumentando o meu friozinho na barriga, como medo de não voltar à minha Petrolândia. Felizmente, o último carro que ia à sua frente diminuiu a marcha e entrou à direita, quando vimos que se tratava de outro Dodge Dart. Senti-me aliviado, pois só a partir daí vi o ponteiro descer. Se fôssemos até Propriá naquela disputa, poderia chegar aos 200k/h e veríamos quem era o mais doido. O mais provável era que nem veríamos, talvez fôssemos visitar São Pedro.
Daquele dia em diante, sempre arranjei as mais belas desculpas para não sair da cidade com ele. O próprio colega já tinha me dito que ele tinha fama de “barbeiro” no volante. Já havia se envolvido em acidente com o carro anterior, por pura “barbeiragem”. Passei a cultuar a filosofia da minha avó que costumava dizer: “Boa romaria faz quem em sua casa está em paz”.