Os Errantes de Deus

[Os Errantes de Deus]

[Memórias do chalé amarelo – Araguari-MG]

Lá do terreiro da porta da rua, vem o grito:

— Ô de casa!

Curioso, corro a atender o chamado.

são dois cavaleiros que se mantêm à distância;

montam animais bastante judiados,

os arreios são uns farrapos mal ajambrados.

Olham-me apenas, sem fazer menção de apear:

— A sua mãe, menino!

A voz do homem mais parece um estertor,

sem dar um passo, observo as suas figuras...

Um inferno de mosquitos esvoaça, atraído

pela remela dos olhos dos cavalos,

e as rédeas enrolam-se nos tocos de dedos

das suas mãos deformadas.

— A sua mãe, menino! — Insiste o outro homem.

Sacudida a minha atenção,

volto-me e grito pela minha mãe.

Pressurosa, ela acode ao meu chamado,

mas estaca na soleira da porta, toma tento,

e a modo de me proteger de um perigo,

empurra-me, com jeito, sala adentro:

— Corre filho, vai buscar um litro d’água!

Volto com a água e observo os homens.

Do alto dos seus cavalos, eles baixam coités

presos em longas correntes brilhantes;

minha mãe abastece-lhes as vasilhas,

eles as recolhem, bebem com dificuldade,

e agradecem:

— Deus abençoe, Siá!

Depois, viram os cavalos e partem.

Quando se distanciam na avenida, ela me explica:

— São os leprosos, meu filho!

— Por que eles ficaram assim, mãe?

Ela ainda os olha longamente,

e com a mão em meu ombro, volta-se para mim:

— Porque Deus quis assim!

— E Deus é ruim, mãe?

Em silêncio, ela se abaixa:

um beijo nos meus cabelos,

uma suave palmada nas minhas costas,

e uns olhos profundos de mistérios,

fazem-me voltar aos meus brinquedos

lá no fundo quintal do chalé amarelo.

[Penas do Desterro, 09 de agosto de 1998]

Caderno 2 p.09-verso

[Da minha coletânea “Arribadas, O Passo da Volta”, ilustrada por Paula Baggio]