Urubus

[Urubus]

[Memórias do chalé amarelo - Araguari - MG

"O meu chalé amarelo? Fica na Avenida Minas Gerais, 1122; em frente ao portão do Parque, viu?"]

I

O urubu é um bicho bastante enigmático e tido como sábio. Dizem que, se criado no terreiro, ele conhece o dono e pode até ser amestrado. Entretanto, a não ser para chocar os ovos, o urubu não tem abrigo definido — sua casa é o mundo todo. Enfrenta a chuvarada agarrado em algum pouso onde atarraca suas garras. Lembro-me muito bem dos dias chuvosos, céu de chumbo, e eles lá, pousados na cumeeira do telhado do açougue.

Do outro lado da rua de minha casa, bem na esquina do Jardim Novo, ficava o muro alto do quintal do velho casarão amarelo do açougue do Seu Vicente. Pelas grades das portas de ferro que davam para o outro lado da esquina, podiam ser vistas as carnes penduradas em ganchos, expostas aos olhos dos fregueses e também às moscas. No fundo do quintal, restos de ossos, águas servidas... nada muito higiênico. O cheiro de tudo aquilo era forte o bastante para atrair os urubus que esvoaçavam pelo quintal em busca de alimento.

Chuva forte açoitando o calçamento da rua... eu pregava o nariz na vidraça da sala e deixava os pensamentos soltos, conduzidos pela magia do ritmo da chuva. A rua estava deserta, e eu dirigia o meu olhar para o bando de urubus pousados sobre o açougue. Com as asas bem juntadas aos seus corpos aprumados a modo de facilitar a água escorrer-lhes das penas, permaneciam imóveis — uma verdadeira linha de espectros negros fazendo a casa de carnes assemelhar-se a um túmulo. E chove... e eles lá, estoicos, impassíveis...

Passada a chuva, sai um sol radioso, alegrando o mundo, rebrilhando na enxurrada que ainda corre na sarjeta. Os urubus abrem suas asas ao sol e ficam, com elas bem estendidas, secando-se.

Esculturas negras, tétricas... contra o profundo azul do céu, agora lembram-me os Anjos do Mal que perderam a batalha, e foram precipitados para a Terra. Pobres criaturas, os urubus... ali, com as asas abertas, tornavam-se alvos fáceis do meu estilingue. Uma pedrada mais certeira, e o bicho rolava do telhado para o quintal do açougue. Eu corria, trepava no muro, e lá estava ele, apenas tonto, mal refeito da chuva e do tombo, olhando-me com aqueles olhos lúgubres... urubu é duro de morrer! Minha coragem parava naquele olhar, nem mais uma pedra eu conseguia atirar no pobre urubu... Daí a pouco, o bicho reanimava-se, ruflava as asas alçando seu portentoso voo para longe de mim. Deixa ele limpar o mundo das carniças... Pena que o urubu não come gente ruim, eu pensava!

II

Entardece. Em frente ao chalé amarelo em que eu morava, o terreiro bem varrido, solo duro e trincado da seca de agosto, é convidativo. Deito-me de costas, na sombra lançada pela casa e fico cismando, pensamentos vagos... delicio-me comendo os botõezinhos das vassourinhas; são parecidos com caixinhas caprichosamente embrulhadas pela natureza... “Queijinhos-de-Deus”, era como eu os chamava. Do outro lado da larga avenida Minas Gerais, bem em frente à minha casa, o denso bosque de árvores altíssimas contrapõe-se ao azul do céu. Os raios de sol douram as altas copas das árvores, e a brisa que sopra, ainda tímida, é o prenúncio da fresca da noite.

Longe nas alturas, vejo os urubus em suas evoluções graciosas nas correntes ascendentes de ar quente. Em seu voo, tão alto, não parecem nada asquerosos! Alguns voam em amplos círculos, farejando a sua comida lá do alto. Outros, passam pelo bando, vão mais longe e depois voltam. Alguns voam mais baixo; dá até para ver, com algum detalhe, as suas patas esticadinhas para trás, bem ajustadas contra a cauda. Agora, com cabeça no chão, meu pensamento voa com os urubus... o tempo não passa.

Será que o tempo do urubu é igual ao nosso? A dona Corina, que mora perto de mim, está tão velha que mal anda.... o que será que acontece com o urubu? Será que ele voa... voa... até morrer de repente? Não consigo imaginar um urubu velhinho, dependente, bichos tão altaneiros que são! Eu queria ser como o urubu.... mas sem comer carniça! Credo! Carniça não! Queria só as asas poderosas dele, a visão e o olfato... queria voar longe, ir, sem me cansar, para a nossa chácara chupar jabuticabas... ou então, ser livre, livre para quê? Sei lá, livre... livre para fazer tudo que eu quisesse, e também, para não fazer nada!

A tarde avança e o sol transforma o horizonte num imenso incêndio dourado. A temperatura cai. Agora, a brisa é mais constante e os urubus descem o vôo sobre o bosque que lhes serve de pousada. Ruflam, estrepitosamente, as suas asas sobre as copas das arvores, ajeitando-se para passar a noite. É ali, nas altas copas do bosque, que eles fazem os seus ninhos. Certa vez, andando entre as árvores em busca das penas escuras perdidas pelos urubus, eu achei um filhote despencado lá das grimpas das árvores; o bicho já nasce horroroso!

Escurece... os urubus finalmente se arrumaram em seus galhos e agora, o silêncio do bosque só é quebrado pelos sons dos bichos da noite. Mas no dia seguinte, os urubus estarão de novo na busca de seu alimento nas imediações dos frigoríficos que ficam a algumas centenas de metros do bosque. E, soberbos, novamente reinarão nas alturas infinitas.

E eu, sempre criança, novamente me deitarei no terreiro varridinho, em frente ao chalé amarelo, para observar os urubus... E deixarei que os meus sonhos dourados de criança me embalem na esperança de escapar nas suas asas poderosas! Então, como é que o meu tempo não é igual ao tempo do urubu? É sim!