Bem lá na cumeeira do paiol,
sobre a telha que fecha as duas águas do telhado,
vi a cabecinha do calango verde.
Vibrátil, espreitava o terreiro enquanto
tomava o seu banho de sol.
Eu, de coração mole feito manteiga
[andava com um estilingue nem sei pra quê...]
atirei uma pedra sem fé nenhuma de acertar.
Para meu espanto com as coisas que se desviam,
a pedrada certeira fez o calango rolar
pela outra água do telhado.
Dei volta correndo pelo curral e fui lá ver;
ele estava caído no esterco seco,
tive até esperança que fosse correr.
Mas não ia não... virei ele de barriga pra cima,
e vi aquela a imobilidade misteriosa do réptil,
pois nunca fica ao alcance da mão
da gente, tão esperto que ele é!
Olhei os seus bracinhos arqueados,
com as patinhas espalmadas para o alto,
num gesto de quem implora por coisas difíceis.
Vi que tinha os olhinhos cerrados,
e a sua boca, em forma de um "V", estava bem fechada.
mas, para meu espanto, fechada como se tivesse
congelado ali, na sua frieza de réptil morto,
um... sorriso! Sim, ele parecia sorrir!
Ô calango, então tu morres nas garras da violência,
e ainda zombas de teu assassino?!
Talvez soubesses que a tua morte ia ficar
para sempre em minha alma!
Ô calango, esse filete de sangue no canto da tua boca,
[tinha sangue mesmo? Ou pus ele lá nessa visitação de agora?]
não sai de minha mente.
Bem que o meu tio Nicolino avisava:
— Péra aí! Não mata o calango não! Deixa ele madurar primeiro!
A sabedoria dessas palavras,
que era para a gente deixar as coisas crescerem em paz,
eu não escutei,
a pedra zuniu no ar, e foi...
Pois agora, calango,
o teu cadáver ainda está verde, verdinho,
e vai ficar sempre assim, na minha memória!
___________________________________
[Desterro, 23 de fevereiro de 1998] - data incerta