[A vertigem é angústia na medida em que tenho medo, não de cair no precipício, mas de me jogar nele. — Sartre]
É tarde, bem tarde, sei que devo partir; endureço os músculos dos braços, das pernas, preparo-me - os meus olhos estão secos, o meu peito esqueceu o que é chorar. Sou apenas o frio terror branco de mim. Fantasmas de um sonho em branco me alucinam, entrego-me nas mãos corrosivas do tempo, mordo as correntes circundantes do meu ser...
Os fragmentos de pétalas das rosas da praça “Manoel Bonito” desabam sobre mim;
velhas páginas de “O Albor”, desabam sobre mim;
velhas páginas de “O Informador Comercial” desabam sobre mim;
velhas páginas de “A Gazeta do Triângulo”, Desabam sobre mim;
tristes páginas de “O Relicário”, de Dinorah Pacca, desabam sobre mim;
os gravetos secos dos eucaliptos da entrada da cidade, desabam sobre mim;
os restos das feiras daquelas quartas-feiras desabam sobre mim;
a peneira cheia de bolinhos de polvilho doce desaba sobre mim;
as flores lilases da lobeira dos cerrados agrestes desabam sobre mim;
as palmas dos buritis chamuscados do fogo das queimadas desabam sobre mim;
o carroção verde do imigrante italiano,
carregado de palha de arroz, desaba sobre mim;
os passos do cavalo baio na enxurrada do cerradão desabam sobre mim;
o planger do sino roufenho da igrejinha das falsas esperanças dos altos pobres da cidade, desaba sobre mim;
na linha da Mogiana, a velha estaçãozinha Stevenson, banhada do sol mortiço do tempo do nunca, desaba sobre mim;
o apito langoroso do trem que parte para Goiás desaba sobre mim;
a antiga fome de ser e de ter que me fazia pular cedo da cama, desaba sobre mim.
É tempo... Desaba... tudo desaba...
Minas inteira desaba sobre mim,
e eu, cansado de ser, morro, apenas morro...
Os corrupios do tempo tornam-se mais rápidos,
todo ontem aconteceu ainda agorinha,
e mal dá para crer que aquela tarde alegre
já foi para o não-tempo, para as calendas;
é chegado o tempo da passagem das águas!
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[Penas do Desterro, 22 de fevereiro de 2008]