Em tempos de pandemia
Onde vejo a solidariedade
Preenchendo telas touchs vazias
Paro e penso no sentido da palavra generosidade
E no curso da vida
Eu acho esquisito
A preocupação da mídia
Isenta de altruísmo
Dar nome e voz a políticos
Ao invés de se preocuparem
com uma parte da população
Conhecida como invisíveis
Gente com fama e dinheiro
Explorando o delicado momento
Pra vender toda sua empatia
Em lives de amor, caridade e descaramento
Distanciamento social
É só um codinome
Para o que já acontece
Em todo território nacional
Desde que o país foi sequestrado,
Pela miséria e pela fome
No final de tudo isso
A dívida será enorme
Analistas evitando suicídio coletivo
E Maquiavel sorrindo na tumba
Ganhando prêmio nobel
Já perdi as contas
De quantas vezes me mantive vivo
Não sei mais se sou substância
Feito as raízes de plantas
Ou um menino novo
Que almeja ser um homem incrível
De vez em quando
Sinto saudades imensas
Das memórias que vivi
Pés descalços
Sobre o quente asfalto
Sol nas costas
Seminua
Chutando a bola dura
Depois da aula
Assoprando pra longe
A preocupação
Com a falta de grana
E a vaga na escola
Nossa nova casa
Papai havia alugado
Tinham dois andares
Limoeiro e quintal grande
Quarto pequenino
Mas bem arrumado
Diferente do endereço anterior
Barraco de madeira
Cercado pelo futebol aos domingos
No descampado
Ainda carrego a cicatriz
Arame farpado, definitivamente
Não combina com menino espoleta
Que se espante e diz:
Mãe, por que a chuva invade o barraco ?
Em tempos de vírus mortal
Meu peito rasga
Aperta e espreme lá no fundo
A verdade
De que pra mim
Isso tudo sempre foi normal
Ter o mínimo
Se preocupar em não perder
O pouco
Da dor e da solidão, sentir-se
Um tanto quanto íntimo
Sempre me pareceu natural
Fazer do abandono
Um suplício
De paixões desperdiçadas
Agora soa óbvio
Se não fosse a sensação
De asas quebradas
Dentro de paredes
E pensamentos escuros
E tão sólidos
Na televisão
Dizem que o tempo
Vai curar tudo
As marcas da covid
A saudade dos amigos
As lembranças das bebedeiras
O sufoco de um amor interrompido
Aquele golpe da realidade crua
Escancarado na cara todos os dias
Por sempre ter sido
O opressor e oprimido
Dizem que tudo isso vai passar
Antes de puxar
Com toda força
O gatilho dessa nova fase
Eu me permito sonhar
Pela última vez com um milagre
Para que o ser humano frágil
Que habita dentro de mim
Prevaleça sobre as vaidades mundanas
De ser o portador
De verdades tão insanas
Mas com a certeza
De não querer ser ninguém
Além de partículas antes do fim
Ou o derradeiro amém.