Lamento de um peão

Publicado por: Maurício Generoso
Data: 19/11/2020
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Autor, Valdemar Reis Poema, Lamento de um peão

Lamento de um peão

Na estação rodoviária eu vi um velho sentado

O que me chamou atenção foi como estava trajado

Um chapéu de carandá, uma bombacha empoeirada

Uma guaiaca na cintura e um gibão aniquilado

Eu disse: - Meu velho, conte um pouco do seu passado

Porque tudo indica o senhor já lidou com gado

Ele disse, meu filho eu faço isso a muitos anos

E nesta labuta triste eu só tive desenganos

Eu já vi coisas bonitas meu filho, tocando boi no sertão

Já sofri, chorei de mágoa, fui empregado e fui patrão

Já vi águas cristalinas correndo no ribeirão

Já dormi em berços de ouro e hoje eu durmo no chão

É eu já fui muito insinuado e tive muito dinheiro

Percorri muitos estados nesse solo brasileiro

Já fui dono de grandes tropas, já fui até fazendeiro

Hoje não tenho mais nada, sou peão de boiadeiro

O revés na vida da gente é como o estouro do gado

A riqueza e a miséria caminham de braços dados

Eu já tive muitos amores e um passado seguro

Nem lembro de fim de vida, de presente ou de futuro

Sou como a cascavel que enrola pra dar o bote

Lobo velho e calejado não tem medo de chicote

De tudo o que já passei eu me sinto conformado

Quero morrer na poeira sentindo o cheiro do gado

Na lida eu fui berranteiro, fui ponteiro e capataz

Já transportei muito gado sem deixar uma rês pra trás

Dormia no meio do gado, vendo o gado remoendo

E vendo a lua entre as nuvens de quando em quando escondendo

Na frente de uma boiada, meu filho, vai sempre a tropa e o cargueiro

O chefe da comitiva, as bruacas, o cozinheiro

Nas margens de um riacho ali na beira da estrada

Na hora da refeição reúne-se toda a peonada

Já senti o frio da chuva, o cheiro da estrada molhada

Já vi os peões gritando em um estouro de boiada

Já vi a coruja no toco, o lobo uivar no grotão

Já vi um marruco bravo gemer nas mãos do peão

Já vi o sol despontando e o orvalho no capim

E uma boiada murgindo ali ao redor de mim

Nunca comecei viagem seu moço, para não chegar ao fim

E esse orgulho eu sempre tive, sei que vou morrer assim

Meu filho, o gado advinha quando o tempo vai mudar

Conhece o ponto de pouco, onde ele vai pernoitar

Conhece o som do berrante e o grito dos boiadeiros

E o que ajuda os peões é a prática do sinuelo

Sinuelo, Sinuelo é um boi velho com um sinete no pescoço

Que vai junto com a boiada, atento nos alvoroço

Se um peão perde uma rês dentro do mato alongada

Com jeitinho o sinuelo retorna a rês na manada

Gosto de ver as paisagens, os rios, as verdes campinas

O sol a tarde sumindo atrás daquelas colinas

E aquela nuvem de poeira que o vento vai levando

E o pássaro um Anú Preto, no lombo do boi andando

Já vi a moça bonita acenando na janela

Vi um trinta pendurado na cintura do pai dela

Todo peão atrevido seu moço, pode cair na esparrela

O que eu não vi é couro duro que aguentasse nosso vela

Estou aqui de passagem na cidade grande

Não vi onde o sol nasce, nem onde ele se esconde

Esta poeira daqui meu filho, tem um cheiro tão diferente

Eu prefiro o cheiro do gado do que o cheiro dessa gente

São Paulo, né?

Agora você me dá licença que o meu ônibus está de partida

Vou para outras paragens é hora da despedida

E não lhe contei a minha vida, apenas algumas passagens

Espero deixar com vancê, deste velho uma boa imagem

Até logo, meu filho, até logo

Valdemar Reis
Enviado por Maurício Generoso em 19/11/2020
Reeditado em 20/11/2020
Código do texto: T7115674
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