Na segunda metade do século XV, época em que se intensificaram as grandes descobertas marítimas, governou Portugal o rei D. João II. Este monarca foi um incansável incentivador das grandes navegações. No entanto, o medo do desconhecido incutia na mente das pessoas a ideia de que no fim do mar havia um terrível monstro que destruiria a tudo que ousasse invadir seus domínios.
Mesmo assim, homens destemidos e com espírito aventureiro se lançavam ao mar em pequenas e muitas vezes frágeis embarcações, buscando desvendar seus mistérios e dispostos a conquistar os domínios do monstro que governava os confins dos oceanos, mesmo correndo o risco de nunca mais voltarem. E muitos não voltaram.
O poeta Fernando Pessoa em sua obra sobre as grandes navegações, conta a saga e o heroísmo de um povo que não mediu esforços nem sacrifícios para promover o engrandecimento de uma nação, singrando mares nunca dantes navegados, desvendando mistérios, descobrindo novos caminhos e novos continentes. Uma pequena parte dessa bela obra que descreve essa saga é expressa no poema abaixo:
O MOSTRENGO
O mostrengo que está no fim do mar
Na noite de breu ergueu-se a voar;
A roda da nau voou três vezes,
Voou três vezes a chiar,
E disse: «Quem é que ousou entrar
Nas minhas cavernas que não desvendo,
Meus tetos negros do fim do mundo?»
E o homem do leme disse, tremendo:
«El-Rei D. João Segundo!»
«De quem são as velas onde me roço?
De quem as quilhas que vejo e ouço?»
Disse o mostrengo, e rodou três vezes,
Três vezes rodou imundo e grosso.
«Quem vem poder o que só eu posso,
Que moro onde nunca ninguém me visse
E escorro os medos do mar sem fundo?»
E o homem do leme tremeu, e disse:
«El-Rei D. João Segundo!»
Três vezes do leme as mãos ergueu,
Três vezes ao leme as reprendeu,
E disse no fim de tremer três vezes:
«Aqui ao leme sou mais do que eu:
Sou um povo que quer o mar que é teu;
E mais que o mostrengo, que me a alma teme
E roda nas trevas do fim do mundo,
Manda a vontade, que me ata ao leme,
De El-Rei D. João Segundo!»
(Fernando Pessoa)
Me inspirando no imortal poeta português e usando a mesma estrutura de seu poema “O Mostrengo” escrevi “O Mostrengo no Brasil” onde tento retratar a realidade do nosso país. Nele não me refiro a apenas uma pessoa ou governante, mas a todos os corruptos e sedentos de poder que nos governam há anos, seja na esfera federal, estadual ou municipal. Se não nos conscientizarmos e fizermos alguma coisa para impedir, essa corja de monstros desprezíveis que não tem o menor respeito pela moral e a vida, continuará nos roubando o direito de sonhar, tirando do nosso sofrido povo o acesso à saúde, educação, segurança e a uma vida digna.
O fim do mar, este fim do mundo com seus tetos negros descrito pelo poeta, vemos espelhado em Brasília, o epicentro desse tenebroso mar onde habita uma grande parte do grande mostrengo personificado por inescrupulosos tanto do poder executivo, legislativo ou judiciário, que se alimentam do sofrimento e do suor de milhões de pessoas de bem mantendo uma nação inteira refém de seus escusos interesses pessoais e de seus apadrinhados.
São raras as naus que se dispõem a enfrentar esse mar sombrio, e quando surge uma ou outra, geralmente são muito frágeis e são afundadas pelo mostrengo bem antes de atingirem seus objetivos. Precisamos urgentemente construir uma nau forte o suficiente, tripulada com o povo de bem dessa nação, com alguém ao leme cujo únicos objetivos estejam bem além de seus interesses pessoais, e sejam o de conquistar esse mar que é a nossa nação para que tenhamos orgulho de ser brasileiros. Alguém tão resoluto quanto o homem do leme da nau portuguesa descrito no poema do imortal Fernando Pessoa. No momento em que nos unirmos em torno desse objetivo, teremos o nosso ”El-Rei” personificado no poder que emana do povo. Então seremos imbatíveis e conquistaremos a vitória.
Finalmente, não nos esqueçamos de um detalhe: O cenário exposto pelo poeta era fruto da imaginação e medo do desconhecido. O nosso é a cruel e triste realidade exposta no poema a seguir, que pode ser comprovada todo santo dia por todo o nosso país.
O MOSTRENGO NO BRASIL
O mostrengo que vivia no mar
Para o Brasil resolveu se mudar;
Aqui chegando gritou três vezes,
Gritou três vezes a zombar,
E disse: Quem está a reclamar,
Para impedir que eu seja o enredo
Para roubar; quem é o atrevido?
E o brasileiro disse com medo:
El-Rei, o povo unido!
De quem são os gritos, esse alvoroço?
De quem os protestos que vejo e ouço?
Disse o mostrengo, e zombou três vezes,
Três vezes zombou imundo e tosco.
Quem quer impedir esse meu gosto,
E de patriota é um arremedo,
Pois só eu mando, e sou o ungido?
E o brasileiro disse com medo:
El-Rei, o povo unido!
Três vezes com medo se escondeu,
Três vezes então reapareceu,
E disse ao fim de temer três vezes:
Aqui quem fala, sou mais do que eu:
Sou um povo que quer o que é seu;
E mais que o mostrengo que eu tenho medo,
Que divide e escravisa um povo amigo,
Manda a vontade que é meu enredo,
De EL-Rei o povo unido!
(Francisco de Assis Góis)
Ouça também a declamação dos dois poemas na página de audio.