Tem alguém que me espia
Olhos meio serrados
Soslaio
Desconfiado
Expressando meu tempo
Meus tentos
... no espelho calado do banheiro
Nada me diz
Em tudo me observava
Meus cabelos
(cada vez mais escassos)
Minha índole
Meus anos de vida
(cada vez mais escassos)
Minha pele ganhando linhas
Meu rosto fulgurando os anos passados
Grito ao prestobarba;
- Me salve!
Limpe minha cara, enxugue minha idade
O cara vítreo ri de mim
Gargalha sobre a pia cheia de cosméticos
E dança com a cabeça num gesto negativo
Como que quisesse dizer:
“- A vida só tem uma direção.”
Não, não há como fugir
A vida é um cavalo desenfreado
Que corre apenas na direção do sol em plena madrugada
Queria eu ter um coração maior
Ou não ter um
Andar pelas calçadas
E rir das desgraças do mundo
Queria que não coubesse em mim tanto Drummond
Nem Pessoa
Queria ser extravagante como Dalí
Mas sou sensível como um cão
Embora seja duro como pedra
O homem que me olha do espelho
Despiu todas suas vestes
Agora é um holograma
Ou um fantasma sem ópera
Me assombra com minha sombra
Acusa-me no palpitar do seu coração
Os amores que não tive
E os que tive
São flores que mal cuidei
Não aguei
Magoei
E fiz chorar de saudade
Numa canção antiga
Num passado próximo
O homem que me olha do lado de lá
É meu amigo
Que me atesta o grau de insanidade
Provocados pelas chuvas e ventos
Que assolaram a cidade
Nas últimas três décadas e meia
E tudo é um trem
Ora cheio
Ora vazio
Um entra e sai de gente e bagagens
A cada estação
Meu sentimento de culpa
Um egoísmo de ser além do que sou
Enfurece e dá descarga no colibri
Que tanto suga o néctar da flor dos meus sonhos
Pássaro bisonho
E o moço do espelho
Agora risonho
Põe dentifrício na escova
Ajeita a gola da camisa sobreposta
No corpo antes arredio
Abro a porta
Recolho a âncora
É manhã e o ar tem cheiro de café moído
No bolso moedas da condução
E no peito um bocado de fé
De que hoje
Vai ser melhor que amanhã