PRIMEIRA PARTE
A gaveta do passado
I
Abro agora a gaveta do presente
e preservo a gaveta do passado,
pois aquilo que nela foi deixado
é relíquia no altar da minha mente:
um tesouro talvez suficiente
pra mil anos sem nunca se acabar.
Ali guardo a emoção de ter um lar
e também a desdita de perdê-lo;
guardo ali mechas pretas de cabelo
de um tempo que as tinha pra guardar.
II
Guardo em páginas hoje desbotadas
um sem número de fotografias:
os meus pais, meus irmãos, tios e tias
e os amigos das noites desvairadas;
outros tantos perdidos nas estradas,
quando erraram no afã de não errar
e uns poucos que acharam seu lugar
sem, no entanto, saber onde é que estão.
Guardo ali fragmentos de ilusão
de um tempo que a tinha pra guardar.
III
Guardo o estojo que foi, na minha infância,
um baú dos tesouros mais secretos:
era ali que ficavam objetos
sacrossantos à última instância
ou profanos em minha ignorância
que velei pra ninguém os violar.
Ali guardo talvez aquele par
de estojinhos das minhas “Sylvapen”
com as quais desenhei o que ninguém
nunca achou que eu pudesse desenhar.
IV
Guardo nesta gaveta uma mochila
já puída por sua vida longa:
nela ia a cartilha, o estojo, o conga,
depois ia o kichute e a apostila;
eu e ela ficávamos na fila,
esperando o sinal até tocar
– isso tudo depois de entoar
as estrofes do Hino Nacional...
Eu sonhava uma Pátria mais igual
– nesse tempo sabíamos sonhar.
V
Guardo aquele poema impertinente
que escrevi sem lograr certa conquista,
junto dele, um recorte de revista
com Renée de Vielmond adolescente.
Tem ainda um soneto incoerente
cujo único intuito era rimar,
tanto é que jamais o quis mostrar,
mas o guardo comigo todo dia:
não nasceu supra-sumo da poesia,
mas me deu bons motivos pra sonhar.
VI
Tudo guardo, porque vai muito além
o que o tempo gravou a fogo e ferro.
Hoje assumo meus erros, mas não erro
copiando outros erros de ninguém;
tudo guardo porque quem guarda tem
e feliz é quem tem o que guardar;
guardo, pois, meu tesouro em seu altar
pra mantê-lo na arca do intangível.
Só assim vôo em busca do impossível:
estou pronto e conheço o meu lugar!
São Paulo, noite de 7 para 8 de fevereiro de 2011