[A primeira noite de um morto]
Sai o enterro ao sol quente
das dez horas da manhã.
Desce o cortejo por uma rua de pedras,
uma ensolarada passagem espremida,
precariamente cortada na crista de um morro
de uma pequena cidade do interior.
Olho... olho... e, sem conseguir suprimir o olhar,
torno a olhar mais intensamente ainda...
O féretro some na declividade da colina
e entra no cemitério, deixando na rua,
por instantes, o mudo aperto de um vazio.
Agora, a rua readapta-se ao movimento;
angustiado, ligo o carro; ronca o motor;
e sem que eu as possa deter,
esmoem-me de novo,
as absurdas engrenagens do dia;
recomeça a luta pelas inúteis firmezas,
e, simplesmente, vou.
De repente, muda-se o ar — cai a tarde,
conjugação de luz, brisa fria e movimentos cessantes
que me traz de volta aquelas dez horas;
mas, paradoxalmente, é a noite que chega!
Roda-me a mente num carrossel de loucura;
sinto (e como sinto!) que logo será noite,
uma fria noite sobre aquela cidadezinha
perdida entre as montanhas;
[por que esse determinismo
da Natureza me angustia tanto?].
Neste instante, dói-me, súbita e clara,
a consciência de que essa noite
será uma estranha e fria primeira noite:
a primeira noite de tantas que se seguirão
para aquele que hoje baixou à terra!
Nessa noite — ai, como pesa esse manto escuro —!
um abismo escuro se abrirá em meus sonhos,
e a visão do morto em sua primeira noite só,
finalmente só, para todo sempre só,
até que se desfaça no pó dos tempos,
será o espectro que guiará os meus pensamentos...
É impossível apagar dos meus olhos
a visão do frio vidro azul do olhar do morto
que o ríctus da morte encerrou para sempre.
Essa noite... é a primeira noite
em que o ser habitante daquele corpo,
desfeito em silêncios misteriosos, não é mais.
Ai... como me dói o selo terrível dessa noite,
a eterna solidão dessa primeira noite...
Nessa noite, o meu olhar desfez-se no Nada;
e agora, vejo-me abandonado,
largado, de olhos vazios, numa estrada,
esperando pelas minhas dez horas da manhã!
[Do meu Caderno #3, Penas do Desterro, 10 de agosto de 1999]
[Também em áudio]