[Algemas]

[Capturas da vida besta]

Ele — é seco, tem a cara chupada,

uma calva dessas coroadas,

e olhos diminutos,

aparentemente vazios de sentido,

que olham, súplices, por trás de espessas lentes.

Mesquinho, ele conta, meticulosamente,

até os centavos das esparsas vendas

que pingam no balcão

do seu Armarinho de tantos anos.

Ela — tem olhos grandes, vivos,

porém de triste fundura;

e os seus sonhos com outros mundos,

são tão velados que ela mal os estampa

em seu rosto magro de fêmea cercada

pela má fortuna de um macho exangue.

Sufoca seus furores com o brilho quase obsessivo

que dá ao piso de vermelhão da parca lojinha

em cujos fundos vivem, atrás de um biombo.

Ali, esperam pelo dia em que o mundo se abrirá

para os livrar de sua atávica mesquinharia.

Os biombos têm frestas;

ela tem outro [sabe-se...];

ele, sempre com um olhar vago,

é de lentas e usuais queixas da vida —,

faz que não sabe... ou será que sabe?

Talvez sinta a piedade disfarçada

nas faces dos amigos,

mas a inextricável teia de seu mundo

os prende; o Armarinho os ata, ,

na mesmice garantidora do pão,

e o brilho do chão continua

como sempre — esmerado.

Um dia, o banquinho da calçada,

liso pelo hábito de seu dono se demorar ali,

a olhar, na calmaria da hora lenta da tarde,

o comércio fechar suas portas, estava vazio,

e o Armarinho, à meia-porta — ele se matara!

E ela, profundamente abatida,

rompidas as antigas algemas,

levou a escureza profunda

de seus olhos ávidos,

ninguém sabe para onde!

[Penas do Desterro, 09 de agosto de 1998]