[Poema a meio caminho do nada]
Na extensa fieira de habitualidades
que cadencia a minha vida,
não há hora e vez para desatinos.
Não bastasse eu apequenar-me
sob o peso da dura canga da vida,
eu ainda me enleio nas teias
pegajosas das minhas palavras;
faço do Sim, o Não — corto a ação!
Para deixar a hora morrer no vazio,
não preciso da ajuda de ninguém;
há muito que aprendi a derrotar-me,
e a preparar, com esmero, o laço vicioso:
a língua da fria razão ajeita o nó e a argola,
desembaraço as laçadas dos argumentos,
e, perplexo, mas perfeitamente submisso,
escondo-me sob montanhas de falácias
que ocultam o rio escuro dos meus desejos.
A minha boca profere as rodilhas do laço,
e uma a uma, elas me envolvem da cabeça aos pés!
É assim que, cabeça baixa, eu me ato e fico;
eu sou o metódico dono da Casa de Armarinhos,
sou um hábil construtor de muros,
sou a nulidade absurda da mesmice estagnada,
sou o semivivo que habita o quarto dos fundos.
Espio a rua nas horas lentas da tarde
enquanto espero o dia de revoltar-me contra
a surdez desse velho muro do Não —
nesse dia, as palavras serão a minha espada;
e então — só então, eu cortarei as velhas peias,
e deixarei que me levem as enxurradas
que jamais voltam às cabeceiras das ruas;
não olharei para trás, vou... vou... vou;
Mas por hora não; ainda não!
Se uma solução grita-me possibilidades, quero tempo:
tempo para amortecer o ímpeto de ir,
e engendrar astuciosas vias de fuga.
Com as mãos frias e o coração ainda aos pulos,
tento abafar os rangidos do molejo da hesitação;
paciente, remendo o tecido das horas:
com as finas agulhas dos pensamentos,
vou cerzindo as falhas que encontro;
se mais falhas surgem, mais pontos dou,
e com essas agulhadas de medrosa indecisão,
abato o entusiasmo da solução para escapar.
E assim, consigo, mais uma vez,
adiar o encontro de mim —
recuso-me a nascer para outros mundos!
Torno a olhar o longe da rua e espero...
Daqui a pouco, passa o carteiro Alfeu,
assobiando em sua bicicleta Philips;
em seguida, passa o Benedito padeiro
imbuído no compasso de sua égua sonolenta;
e logo após, espero pelo sorriso brejeiro
da moça da farmácia que volta do almoço,
[admiro as suas belas coxas, mas é claro,
sendo quem sou, não sei o nome dela].
Já passa das duas horas da tarde;
é hora de passar o Avelino, oficial de justiça,
a cumprir sua rotina de entregar avisos
que ninguém jamais ousa ignorar.
[E se o Avelino me trouxesse um aviso assim:
"o senhor está intimado a ser livre, etc, etc..."?
O que farei?! O que farei para não ir?! ].
Antes que a tarde caia, passará o irônico viajante
que me reabastece o Armarinho;
reponho, assim, ao fim do dia,
o estoque que dá continuidade ao negócio.
[Se esse homem não mais voltasse,
ou se voltasse, mas não me desse mais crédito,
eu fecharia o Armarinho e ficaria livre;
mas ele me conhece bem; sabe que sou honesto,
sabe que eu o espero, e me tortura com o seu sarcasmo!].
Espero terminar o desfile de habitualidades
que marca a cadência dos meus dias,
e à tardinha, com a ponta da tesoura preta
que pertenceu a minha avó, farei mais uma marca
na régua dependurada atrás da porta;
mais um dia, meu Deus, mais um dia sem ir!
[Reafirmo: eu não tenho no que me agarrar;
a minha fé é um bule quente e sem asa!].
Mas a esperança é apenas o engodo da continuidade,
esperarei pelo dia seguinte que poderá ser,
enfim, o dia do uivo deste lobo faminto
que vive a devorar as minhas entranhas.
Quem me vê atrás do balcão do Armarinho,
quem vê os meus olhos baços de desânimo,
quem vê o meu jeito amolentado de ser,
nem de longe imagina — eu juro! —
é com fervor que eu espero esse dia!
Quando há de vir? Não sei... não sei...
E agora, para disfarçar a minha fraqueza,
para esconder essa minh'alma
de tíbia água chilra,
vou escrever a desculpa que me dou;
meto aí estes versinhos bobos, descabidos,
que não passam duma filosofia de ponta-de-rua:
Não me engano mais:
a face dura como a pedra,
o túmulo dos lábios cerrados
são preferíveis ao riso fácil
que emoldura as cotidianidades!
[Não me olhem assim! Não sei o que isto quer dizer,
acho que nada... nada mesmo!
Será que copiei esses versinhos de alguém?]
Se eu pudesse, se eu não fosse tão tíbio,
eu diria que eu sou um enigma,
mas a tanto não me atrevo;
e como fecho, ofereço-vos, de coração,
este simplório jogo de palavras:
se não me denunciei nestas linhas
é por que olhos remissos as leram,
mas, se eu me narrei nestas linhas,
então, este poema está incompleto:
— Ficou a meio caminho do nada!
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Excerto do meu "Caderninho 1"
[Penas do Desterro, 09 de outubro de 1998]