EU PRECISO DIZER ADEUS
I Prêmio Literário Canon do Brasil 2008
20a. Bienal Internacional do Livro Sao Paulo 2008
(escute em audio)
Eu preciso dizer adeus
Às paredes que grafitam poesia
Do dia-a-dia das guias, das agonias
Do asfalto frio que não me vê
Na esquina da solidão
Da Consolação, cão faminto
Tão sozinho
Eu preciso dizer adeus
À fumaça das fábricas, dos carros
No proibido das faixas neon
Ao lixo, aos escarros
Aos trincados telhados
Ao quartel, ao cartel, patrulha
Aos negros gatos
Eu preciso dizer adeus
Aos prédios espelhados
Reflexos de mim, tempo molhado
À garoa da minha fé retrô
Nos trilhos, no metrô, à Praça da Sé
Aos ambulantes e andantes sem café,
Pedantes, arrogantes elegantes
Eu preciso dizer adeus
A toda gente que aqui não tem lugar
Ao parque que eu também corria
Que há poeira nas flores, no ar
No descanso no Ibirapuera
Beijos no Arouche, carinho fugaz
Carrinho de mão, verdura e limão
Velho moço, velha lata... idoso
Na casa papelão, na escadaria
À gritaria, aos fumantes. Droga!
Às Catedrais, ais.
Escadas rolantes, finos barbantes
Eu preciso dizer adeus
À minha amiga Paulista
Que tem pista e sombra que zomba
Nos spots e placas oportunistas
Dos trapezistas e alpinistas
Nas pernas de pau e sale
Preço da fantasia, álcool e gasolina
Do tostão, da creolina, fedentina, das Carolinas
Que perdi o passe e não vejo qualquer estação
Ao portão do não que arromba
Ao pedinte que ronda. Rapadura!
Eu preciso dizer adeus
Ao gelado da contramão
Do 13 ou 23 de maios já vãos
No sinal entoando vermelha paixão
Sem ensaios, desmaios
Do palhaço, do cordel, do cantador
Sem outdoor encantador
Eu preciso dizer adeus
Aos réus, às vitimas, aos fariseus,
Às chuvas de março e aos ipês no breu
Jacarandás de aço como eu
No barranco, furados pneus
Aos cartões picotados e afanados
Eu preciso dizer adeus
Aos pastéis, ao arroz e feijão sem vaidade
Baião de dois, de mil mornos e sem gás
À bandeira que agita a cidade
Tremula no rubro e negro de mim
Tremula... Tremula...
Nos carretéis dos andaimes
Nos motéis perfume
Eu preciso dizer adeus
À arquitetura, às abandonadas esculturas
À arte sem cor, só dor demolição
À loucura da meia-noite no corredor
Nos pontos de açoite e chorinho
À candura do menino vadio
Que vazio chora baixinho
No meio fio, no meio fio
Marginal, das marginais
Eu preciso dizer adeus
Aos filhos meus e teus
Estou por um fio de lamento
Sem tua mão quente
Nas valas, nos rios, nas veias
Da realidade da cidade
Do meu coração já doente
Eu preciso dizer adeus
Às cabeças, aos monumentos
Neste Imperial momento
Sem querer ter documento
Ser especial, espacial
Na nave de um Cometa
A me levar
À sorte, ao norte ou morte
E na janela sem nada dizer...
A Deus... a Deus...
Que tudo é normal.
Eu preciso dizer adeus
Adeus...
Cíntia Thomé
2008
DEDICO AO MÚSICO LAILTON ARAÚJO E A TODOS NÓS QUE SENTIMOS A CIDADE "GRANDE"
(escute o audio abaixo)