(Mensagem à amiga)
a minha homenagem a quem veio
de lá: um rosário de lembranças pra
quem foi criança no interior e foi
livre e foi feliz e correu riscos e
viveu intensamente...
Estamos em viagem, minha amiga. Estamos em viagem e por sorte a providência tem nos permitido assento à janela. E isso é privilégio dos grandes. Privilégio, sim senhora. Daqui se consegue espreitar lá fora – perto ou longe, passando lentamente ou às pressas –, panoramas que alguns, menos afortunados que nós, também poderiam olhar, mas não olham; se olham, não enxergam; se enxergam, não dão a mínima.
Eu e você fazemos parte desse seleto grupo dos que viajam à janela. Sabemos o gosto indescritível da manga no pé, da goiaba com bicho, de peixe apanhado agorinha no rio, riacho ou represa (com vara ou peneira que se arrasta nas beiras lamacentas). Com um pouco de sorte, alguns de nós, mais ousados, sabemos até o sabor raro de uma boa porção de rã empanada ao gosto da gente da roça; sabemos – de ter provado pelo menos uma vez – que gosto tem a carne de tatu, de lagarto, de pirambóia ou de içá (todos garimpados por nossas mãos ágeis de meninos e meninas travessos e sadios do interior).
É por isso, minha amiga, que trazemos mistério em nossas gavetas: são relíquias que nos tornam tão familiares, mesmo que tenhamos berço distinto, que venhamos de gerações diferentes ou que nossas coordenadas geográficas não se avizinhem.
Temos sorte. Essa viagem com destinos e rumos improváveis, longa e deliciosa, num dos sacolejos de rotina acabou nos empurrando para o mesmo ponto de fuga. Agora, tomado de euforia e parecendo menino que fez arte, no silêncio desta tarde chuvosa de domingo, ponho-me imaginando nossas relíquias, espanando a poeira que quer embaçar a memória e mirando, de olhos e coração apertados, a fresta que se abre para a infância: sei que, à época, não nos conhecíamos; sei que viemos de lugares bem distantes entre si... Sei disso tudo, mas insisto: você também estava lá!
Seria aquela menina suave e arredia, intimidada pelo rigor dos pais?
Quem sabe você fosse a outra, a mais ousada, a que me ensinou o que significavam certas palavras proibidas nas noites de lua enquanto nossos pais proseavam no terreiro, sempre aos acordes de moda boa saída do rádio que pegava o programa do Zé Béttio...
Também poderia ser a mais íntima, a quase parente e até um pouco da família, que já no início dos atrevimentos, antes dos meus treze anos, sendo mais velha e experiente, como que por compaixão, sem conversa de qualquer assunto, entendeu o que se passava comigo e se deixou encoxar, no escuro da noitinha, embaixo da pitangueira, encostada na cerca de balaustre. Altruísta, durante generosos minutos deu-me a chance de saber o sabor dos lábios, a macieza dos seios e seu deslumbrante intumescimento; deu-me a saber tão bem e com tanto entusiasmo que me encorajara à ousadia de outras expedições, logicamente frustradas pela esquiva: ousadia que até hoje maldigo, porque encerrou ali e nunca mais se repetiu aquela que vinha sendo a mais estimulante de todas as experiências.
Não sei qual delas era você, nem se você era outra, porque bem poderia ser a que mais ficou em mim, a que habitou meus sonhos de "quando eu crescer", a que amei de verdade no silêncio dos primeiros versos ou uma das que tanto desejei nos acordes dos bailinhos, quando se alternavam na vitrola os "LPs". Você e eu poderíamos estar ali: sofá ao canto, na sala de casa, mal-vigiados pelos pais - que fingiam cuidado num misto de sentinela e cumplicidade. Lembra disso?
Éramos todos apaixonados e donos do mundo, às vezes indomáveis e orgulhosos de uma rebeldia romântica, dessas que nos empurram para lutar pelo bem de uma nação, pela justiça social, pela liberdade de criar, de cantar, de compor, de atuar, de estudar, de desbravar, de amar... de imitar muito mais o comportamento de Mahatma Gandhi, por acreditar no Satyagraha e no doce princípio da não-agressão como um meio de revolução; de louvar muito mais Luther King que os arcaicos ignorantes preconceituosos; de ver mais virtude em Madre Teresa de Calcutá que nos fanfarrões e exibicionistas "playboys" que, independentemente de época, são sempre entronados pela fútil mídia que abastece os consumidores alienados; de aplaudir a arte inovadora e gritar não aos meramente enlatados...
Por isso tudo, insisto: você estava lá.
Essa certeza vem da constatação de que tudo o que lá estava aqui está, porque eu trago tudo comigo. E como você está aqui, minha amiga, sem dúvida alguma lá você também estava.
Sabendo, pois, que vida e morte são apenas estágios e que viver e morrer são apenas trajetórias, então prossigamos.
Estamos à janela e isso é privilégio dos grandes.
Estamos à janela, de olhos e corações abertos.
PS: Há sempre muitos túneis nessa trajetória. Tenho certeza de que, passando por eles, não sentirá medo porque quem fez teatrinho de sombra com luz de lamparina não se assusta com qualquer escuro. Mas quero que saiba: mesmo que, num deles, não me possa enxergar, ainda assim eu também estarei lá...
São Paulo, 24 de novembro de 2013 – 19h