Uma das coisas mais gostosas que eu gosto de fazer é, sem dúvida, escarafunchar o meu baú de memórias e viajar nelas, como se as curtisse novamente.
Como bom nordestino que sou, não poderia deixar de apreciar o período chuvoso. Ao soar os primeiros trovões, os lavradores vibram em suas entranhas com exuberante alegria, à chegada do inverno. Na verdade, são as chuvas de verão, mas é assim que nós chamamos, mesmo. Logo, ao cair da primeira chuva, acordamos cedinho, a patroa já tem preparado o café que bebemos às pressas para sairmos quase em disparada, rumo ao roçado, previamente preparados, coivaras queimadas, terras aradas, tudo limpo e pronto para iniciarmos a plantação. O farnel está pronto, com carne seca assada, farinha, rapadura cortada, amendoim pilado e uma cabaça com água até o gogó. Pinga, nem pensar! O 'figueredo' agradece. Colocamos tudo num bisaco, e passamos o cabo da enxada pelas alças de corda deste e da cabaça, apoiados no ombro esquerdo, saímos todos, a caminho da roça. Saímos a passos firmes e ritmados, cantando canções de amor ou que retratam o viver do sertanejo.
Chegando ao roçado, nos distribuímos em duplas. O homem à frente, vai abrindo as covas a cada golpe de sua enxada, passo a passo, no sentido transversal do terreno. A mulher o segue, retirando as sementes de seus embornais, colocando milho e feijão alternadamente, fechando as covas com os pés, ao passar.
Lembro-me ainda, das noite de chuva forte a revelar goteiras por todo o telhado. Minha mãe colocando toda sua bateria de panelas de ágata e alumínio. Eu me divertia à beça com o estrondear dos trovões ao longe que mais pareciam o rufar de uma bateria de tambores nos desfiles de 7 de setembro a tocar simultaneamente com todo o vigor. O mais gostoso era ouvir aquele gotejar sonoro em diversos matizes, a princípio lento e descompassado. Mas à medida que a chuva aumentava, o ritmo das goteiras entrava em síncrona harmonia como se fosse uma melodia exótica, voltando a ralentar até extinguir-se totalmente ao parar da chuva.
Rebuscando essas memória, em janeiro de 2005, veio-me então a inspiração de compor uma peça em andamento 2/4, num estilo 'ragtime' para piano, flautas e metais, com pequena percussão, tentando retratar o gotejar sinfônico de minha infância.
Diante de uma circunstância dessas, muito se lastimam. Aquilo que se traduz em festa para os nordestinos, para os da cidade é uma lástima. O sertanejo diz: "Está bonito pra chover!". Os urbanos falam: "O dia está feio pra chover!". Depende muito do ponto de vista do observador diante de um mesmo evento. Enquanto muitos se lamentam por causa das goteiras, eu louvei a Deus por aquele inusitado espetáculo e agradeci a ELE por ter-me dado mais uma inspiração que tento traduzi nesta peça que acompanha essa leitura. Para ouvi-la, lendo este mesmo texto, basta clicar no link logo abaixo.
Que Deus abençoe grandemente a todos os que leem esta mensagem.
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Glossário:
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Bisaco: s. m. saco ou sacola.
Coivara: s. f. galhos secos de arbustos cortados e queimados quando preparam os campos para o plantio.
Embornal: s.m. saco de pano que se posta a tiracolo.
Farnel: s. m. marmita, guisado preparo para os agricultores ou boias-frias.
Figueredo: alusão ao fígado, órgão mais sofrido e degenerado em decorrência do uso de bebidas alcoólicas e outras drogas, lícitas ou não.
Matiz: s. f. cor; (p. ext. timbre, analogamente falando).
Pilado: adj. m. passado pelo pilão.
Ragtime: anglicismo; ritmo característico do velho oeste dos EUA, muito tocado nos 'saloons' dos filmes 'farwest'.
Ralentar: v. i. termo musical que denoda desaceleração.
Retratar: v. t. d. descrever, tipificar, dar a ideia de.
Tiracolo: s. m. Cordão de fios ou pano que se pendura atravessado, em diagonal do ombro ao quadril oposto, como faixa presidencial, de campeão ou miss.