Sô Lindumiro e as chinelas trocadas

Publicado por: Maria Mineira
Data: 05/01/2013
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Maria Mineira
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Após uma existência quase inteira lidando na roça, Sô Lindumiro deixou a fazenda por conta do único filho e mudou-se para a cidade com dona Izaltina, sua esposa. Ao contrário do que pensava o herdeiro, Lindumiro se adaptou muito bem à nova vida, talvez pelo fato de que em cidadezinha do interior a gente dá um pulinho e já está fora do arruado. Homem falante, bom de prosa, logo se enturmou e estava sempre nas rodas de truco, contando vantagens:
— Oia, aqui, cumpadi Tião, num tô rastano mala não, mais ocê querdita qui a fia da Zefa do Juca tá inrabichada cumigo?!
— Larga mão de cê besta cumpadi Lindumiro! Aposto qui isso é mapa sua, a moça tem idade pa sê sua neta! Além do mais, cuidado cumpadi, qui ela é namorada do sordado Oripão.
— Tome tento home! Cê inda vai si istrepá cum isso, falou o Benedito que estava noutro canto.
— Uai! Ieu num sô qui nem ocês, qui já tão mijano nas butina não! Ieu inda dô meus pulo de cerca, sô!
— Num dia desses, o cumpadi inda vai ficá ingastaiado numa cerca de arame farpado, caso a cumadi Izartina num te pegá no pulo inhantes e fazê qui nem a vó dela feiz com o finado Coroné Antõe Bento...
Dona Izaltina, a patroa, era pessoa muito boa, mas não admitia pouca vergonha debaixo das suas barbas. As más línguas falavam que a sua avó, certa vez surpreendera o marido em flagrante delito com umazinha, que pajeava seus meninos. Depois desse dia, o pobre ficou desprovido de seus “documentos” e, pra piorar, dizia-se que dona Izaltina era a herdeira da famigerada ferramenta da avó.
Lindumiro retrucou:
— Viressa boca pra lá! Creduincruz treis veiz! Fica ocês sabeno qui muié minha ieu trago no cabresto. É do quarto pra cuzinha e da cuzinha pra bica d’água, argumentou Lindumiro, protegendo sua respectiva documentação com as duas mãos por cima das calças.
Compadre Oliço ainda brincou:
— Tenho cá pa mim qui o cumpadi tá é qui nem ancinho sem dente, num tá rapano é nada! Nem a Zumira Zaroia tá cubiçano ocê, cumpadi!
— Deus mi livre e guarde daquele istrupício! Disse ele se benzendo. Aquela lá, ieu tô injeitano. Dexo procês... E para de mi botá zoio gordo, sinão ieu acabo saino na testa coceis tudo, hein?!...
Zumira Zaroia era uma mulher já bem erada, que perambulava maltrapilha pelas ruas da cidade. Dizia-se que já tivera seus tempos de glória, mas isso foi há muito, muito tempo; na época dos coronéis, quando era conhecida como Zumira Tanajura devido às ancas avantajadas que possuía. Ela até chegou a ter, de sua, uma casa de moças de má fama. Ocorre que, certa ocasião, ela foi motivo de uma briga entre dois boiadeiros e, ao tentar apaziguar os ânimos, levou um golpe de peixeira no olho, fato que lhe rendeu o novo apelido. O tempo, que não perdoa ninguém, nela também caprichou. E Zumira acabou ficando mais feia que briga de no foice no escuro.
Aquela tarde transcorria calma. Os compadres jogando truco, contando piadas. Só cessaram quando dona Izaltina entrou no alpendre, trazendo a merenda para as visitas. Enquanto tomavam o café e comiam pão de queijo, viram a Zumira Zaroia atravessar a rua e se aproximar de onde estavam. Com o rosto ingenuamente risonho, foi logo dizendo:
— Ô Sô Lindin! Onti di tardi, o sinhô foi lá im casa pa mode nóis fazê bubiça... Si alembra que ferrô nu sono adispois qui nóis cabô?! Pois é. Côndi o sinhô acordô, tava açulerado e cum pressa! Intão si aprumô da cama e carçô foi uma das minha chinela! E largô uma chinela sua lá im casa, home! Agora, qui ieu ia passá na frente da vossa casa, pruveitei pa mode nóis distrocá...
Imediatamente, os companheiros baixaram os olhos, fixando-os nos pés do Sô Lindumiro que, de fato, calçava um chinelo de couro de número 42 e outro bem menor, modelo feminino, igualzinho ao que a Zumira Zaroia tinha no pezinho encardido.
Enrascado, Lindumiro tratou de proteger o “amigo”, mirando apavorado a esposa que avermelhava o rosto e já começava a soltar fogo pelas ventas. Imediatamente, ele começou a tossir, fingindo-se de engasgado. Pelejando para ter um conveniente infarto.
 

                 



Dicionário mineirês:
Açulerado: Preocupado
Rastar mala: Contar vantagem
Sair na testa: Brigar
Enrabichar: Se apaixonar
Ingastaiado: Preso em
Mapa: Lorota, mentira
Bubiça: ...