ASPECTOS DA MORALIDADE EM SANTO AGOSTINHO
Ao conhecermos a vida e o legado de Santo Agostinho de Hipona, haurimos a sua vitalidade que, dentre tamanha riqueza, brilha como seu peculiar arcabouço, a existencial busca, empreendida pela pessoa humana, rumo à meta da felicidade nas vias da verdade e do amor. Assim, no bom tesouro agostiniano, sublinhamos a questão da moralidade humana.
Na obra Confissões, Agostinho manifesta olhar cristão numa revisão de sua vida pecaminosa anterior:
“Eu pecava, porque em vez de procurar em Deus os prazeres, as grandezas e as verdades, procurava-os nas suas criaturas: em mim e nos outros. Por isso, precipitava-me na dor, na confusão e no erro” (1996,.p.60).
De fato, esse Padre da Igreja, apesar de ter uma mãe que é autêntica cristã e, portanto, um contato de berço com o cristianismo, ao percorrer sua formação cultural e retórica, abandonou a Igreja Católica- pensando que esta transmitisse fábulas ou mitos. Sem perder o amor pela verdade, o jovem Agostinho buscava-a incansavelmente na formação cultural latina onde se evidencia seu contato com o eclético Túlio Cícero, por meio da obra Hortensius.
À luz do cristianismo, numa reavaliação da opção pelo mal em sua juventude, destaca Agostinho o roubo sem necessidade – o mal pelo mal – com seus colegas, à pereira de um vizinho e, ferrenhamente marcante, o convívio com uma concubina, a quem amava eroticamente, alimentando o vício da luxúria. De fato, o nobre filho de Tagaste estava fortemente vinculado a esta mulher, porém, unido segundo uma paixão utilitária e carnal que não transcendia ao amor agápico. Nesta revisão vital, à luz da verdade, ele escreve:
“O inimigo dominava o meu querer e dele me forjava uma cadeia com que me apertava. Ora, a luxúria provém da vontade perversa; enquanto se serve à luxúria, contrai-se o hábito; e, se não se resiste ao hábito, origina-se uma necessidade. Era assim que, por uma espécie de anéis entrelaçados – por isso lhes chamei cadeia -, me segurava apertado em dura escravidão” (1996, p.209).
Desta auto-avaliação agostiniana acerca do vício, ou cadeia, que foi a luxúria em parte de sua vida, quando ainda não era convertido, destaca-se o itinerário de formação do vício, como mal moral que pode encontrar abertura na vida da pessoa humana, pervertendo-lhe a vontade. Eis o caminho da “dura escravidão” moral: vontade pervertida, seguida de vício, que por sua vez é acompanhado do hábito que, se não encontra resistência, degenera na necessidade voltada para o mal moral, que a escraviza.
Do registro autobiográfico, onde Agostinho registra seu momento cético (“Se duvido, existo”), e sua passagem pela seita maniqueísta, depreende-se que a pessoa humana, mesmo se acorrentada a uma vontade má, ainda deseja encontrar-se com a verdade. Pois essa busca em nosso santo filósofo se manifesta neste período, pela Razão. Quanto à racionalidade dessa busca, afirma Étienne Gilson (2009, p.194):
“A razão vai mais longe. Ela procura um conhecimento mais exato e mais rico das coisas da fé. É ela que permite uma inteligência um pouco mais clara dos próprios mistérios, como testemunham Agostinho e os outros Padres, recompensa preciosa de uma vida santa e do zelo pela fé, unido a um espírito robustecido pelas disciplinas filosóficas”.
A razão é que, quando Agostinho deparou-se com o vazio da retórica maniqueista, prosseguiu sua busca fiducial pela verdade e, quando as circunstâncias de sua vida, impulsionadas pela providência divina, conforme ele mesmo reconhece, levaram-no a ler o epistolário paulino e à audição da veraz exegese do bispo Ambrósio, em Milão, emoldurada pelo domínio do prelado milanês sobre as técnicas retóricas, o filho de Mônica começa a entender a Sagrada Escritura que se lhe torna luminosa e, encontrando com Jesus Cristo vivo na Igreja, compreende que só Ele é a verdade que tanto inquietava seu coração, por isso decide-se por Cristo e pede o batismo. Agostinho evidenciou isso, na seguinte oração:
“Tarde Vos amei, ó Beleza tão antiga e tão nova, tarde Vos amei! Eis que habitáveis dentro de mim, e eu, lá fora, a procurar-Vos! Disforme, lançava-me sobre estas formosuras que criastes. Estáveis comigo e eu não estava Convosco! Retinha-me longe de vós aquilo que não existiria, se não existisse em vós. Porém, me chamastes, com uma voz tão forte que rompestes a minha surdez. Brilhastes, cintilastes e logo afugentastes a minha cegueira! Exalastes perfume: respirei-o suspirando por vós. Eu vos saboreei, e agora tenho fome e sede de vós. Vós me tocastes e ardi no desejo da vossa paz”. (1996, p.285).
O papa Bento XVI, na catequese sobre Santo Agostinho (em 27 de fevereiro de 2008), falou da segunda conversão vivida pelo Epíscopo Africano, uma espécie de passagem da vida intelectual à vida pastoral:
“ Renunciando a uma vida apenas de meditação, Agostinho aprendeu, muitas vezes com dificuldade, a pôr à disposição o fruto da sua inteligência em benefício do próximo. Aprendeu a comunicar a sua fé ao povo simples e a viver assim para ela naquela que se tornou a sua cidade, desempenhando incansavelmente uma atividade generosa e difícil [...]. Mas ele assumiu sobre si este peso, compreendendo que precisamente assim podia estar mais próximo de Cristo. Compreender que se chega aos outros com simplicidade e humildade, foi esta a sua verdadeira e segunda conversão”. (www.vatican.va . Acesso em 21 jul. 2010).
Desse modo, do exemplo agostiniano conhecemos que o ajustamento moral do ser humano, não prescinde da busca racional por tal objetivo, contanto seja essa, aliada ao encontro pessoal com a verdade, mediante a fé, que conduza a pessoa humana ao amor como penhor de felicidade.
REFERÊNCIAS
BENTO XVI, Papa. Santo Agostinho de Hipona (5). In: http://www.vatican.va/holy-father/benedict-xvi/audiences/2008/index-po.htm .Acesso em 21 jul. 2010.
GILSON, Étienne. O filósofo e a teologia. São Paulo: Ed. Academia Cristã; Paulus, 2009.
SANTO AGOSTINHO. Confissões. São Paulo: Nova Cultural, 1996. (Col. Os Pensadores).