Carta à Solidão

Publicado por: Manuel Marques
Data: 17/09/2007
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Créditos

Autoria e Voz: Manuel Marques ... já tive o prazer de declamar esta 'carta' ao vivo! espero que o prazer de a ouvirem aqui seja igual!
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Carta à Solidão

Doce Solidão que me atormentas, olá como estás?

Com tanto artefacto e objectos cuja vida não passa de mera fantasia animada, pelo sonho de algum lunático, ou apenas sugestão de alguém que queria mais do que apenas um teclado para espancar... apenas te avisto todos os dias, naquelas memórias distantes das viagens para a escola, no comboio cheio, a apanhar a brisa gelada do Inverno e a deslocação do ar provocada pela passagem de outro na direcção contrária. Ah e aqueles sonhos de quando ia à pressa para a escola, sempre acompanhado pela mala carregada de livros e passava pela linha. Em sonhos morria sempre alguém, o terror de sentir pedaços de corpo separarem-se só porque não havia passagem subterrânea, loucuras de infância, sonhos de acordar transpirado, assustado.

Queria eu tomar-te como uma amiga de mera ocasião, ou sentir apenas o que tenho dentro de mim como sendo a única vantagem que encontraria para ser feliz. Verbo conjugado sempre no pretérito, perdoa-me as idas ao museu de um passado sem graça, apesar das subidas à Graça ou os olhares gulosos para uma qualquer Graça que fosse a passar. Mas tu és companheira de todos os dias, das reflexões, a que fica depois das despedidas, das viagens breves ao meu corpo, dos olhares internos que mais ninguém quer saber.

Querida Solidão, em ti refugio-me num silêncio sepulcral, de demónios e trevas auto-impostas. Podia antes ver a Luz, desafiar a lei da gravidade e voar, viver para dizer que amo alguém, e que se danasse essa mulher se não gostasse de mim. Viver para escarnecer? Nunca...

Mas tu que voltas sempre, nem que seja a dormir, ou no desconhecido da morte e a sorte que era poder viver sempre em paz contigo e espancar alegremente este teclado como se fosse um ditador a precisar de guerra total às suas sujas ideias de perversão e desgosto. Tu que voltas, me acompanhas como se fosses um castigo, oh solidão de merda, o respirar não pode ser o mesmo que o de outra pessoa junto a mim, a roçar-se num frenesim de luxuria, a fazer amor até cair. A carne é fraca? Felizmente e tu minha desgraçada, que não me dás mais nada senão inspiração para escrever, pura tortura de falta de afectos, elogios à distância, quero que te danes, não quero mais saber de ti, porque não estou sozinho, apesar de gostar de ter a carne fraca, com tusa para o amor, com vontade de transgredir, semear caos e desordem. Que vida é esta de ver sempre tudo certinho, mesmo que a paga seja a solidão?

Deixo-te um beijo no coração... mas é injusto, porque tu não tens coração, apenas vácuo no lugar dele e tudo sugas para um qualquer buraco negro.

Um abraço, mas abraçar o quê? Não se abraçam buracos negros, apenas se é sugado para o nada.

Gostava de te dizer que és um pedaço de luz, apenas te sinto como orquestra desafinada. O ser humano não foi feito para viver sozinho, o padrão de quem criou os humanos não é, nem pode, ser esse.

Amo-te? Não!

Manuel Marques
Enviado por Manuel Marques em 30/04/2007
Reeditado em 05/06/2021
Código do texto: T470218
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