QUEM PARTIR PRIMEIRO

Eu tenho alguns bons amigos.

Não muitos.

Mas entre esses poucos, tenho amigos bem leais.

Um deles, posso dizer que o mais chegado, é daqueles amigos a quem a gente pode contar qualquer coisa.

Qualquer coisa mesmo.

Sem medo de ser incompreendido ou repreendido. E se for também, não importa.

Acho que em uma amizade de verdade nem sempre estamos certos e precisamos ouvir isso.

São décadas de amizade.

Pelo menos, até enquanto escrevo essa crônica,  lá se vão mais de 30 anos.

Já passamos por muita coisa juntos. sobrevivemos a verdadeiras tempestades.

Se já brigamos? Muitas vezes.

Já discordamos um do outro. Discutimos, mas sempre para ver o bem do outro.

Sempre falamos na cara o que pensamos. Sempre estamos dispostos a ouvir umas verdades.

Talvez isso seja um dos motivos que ajudam a manter essa amizade assim, sólida.

Mesmo distantes (moramos a milhas um do outro) sempre que podemos, nos encontramos, juntamos as famílias e passamos finais de semana ou réveillons bem agradáveis e alegres.

Na verdade, já chegamos a morar em países diferentes, mas nunca perdemos contato.

E nesses encontros possíveis em que vamos num na casa do outro, ficamos horas jogando conversa fora. horas mesmo.

Ora, rindo de nós mesmos... ora, rindo dos outros, sim, e sem nenhum pudor.

Também falamos sobre coisas sérias,  trocamos conselhos, nem sempre seguidos, mas tentamos ajudar um ao outro.

Num desses encontros, quando ele veio passar um réveillon na minha casa, sentados na varanda, entre uma brincadeira e outra, resolvemos fazer um acordo, em nome da nossa amizade.

Não é muito comum falarmos desse assunto, embora não nos assuste, mas decidimos bolar um acordo para quando um dos dois partir deste mundo.

Vai que morramos em datas diferentes.

Pois bem: quando um de nós partir, o que ficar teria o compromisso de, primeiro, não chorar.

Talvez imaginar que aquela seria mais uma das piadas e loucuras que costumávamos fazer para constranger e fazer o outro sorrir.

No máximo, é pra ficar chateado ou aliviado porque, pelo menos dessa vez, alguém ficou de fora da brincadeira.

Outra coisa que quem ficar, estará previamente autorizado a fazer é contar uma grande mentira sobre o que partiu primeiro.

Não uma mentirinha qualquer, mas uma mentira deslavada, comprometedora, que constrangesse a quem ouvisse, de preferência se for alguém

que não vai muito com nossa cara.

E pode enfeitar, dizer que tem provas, que só está contando agora, porque não queria magoar o outro em vida.

Essa seria uma bela forma de aprontar mais uma das nossas e de saber que está sendo feita a vontade do amigo.

Quem ficar, também teria o direito, autorizado, inclusive, pelas nossas famílias de ir na casa do que partiu na frente e pegar um objeto que fosse o preferido dele

ou aquele que melhor representasse a nossa amizade.

Uma antiguidade, por exemplo. Afinal, seria, além de tudo, um símbolo de uma amizade também antiga e valiosa.

Não sabemos quem vai primeiro. Quem vai sentir a falta primeiro.

Mas aqui pra nós, esperamos, sinceramente, que este dia não chegue tão cedo.

Ainda dá tempo de aprontar mais algumas em vida.

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(CRÔNICA DEDICADA AO AMIGO, CARLOS ITAMICY, COM OS DESEJOS DE UMA VIDA LONGA E FELIZ, COMO TEM SIDO A NOSSA AMIZADE).