(da antologia “Olhares da meia-idade”)
Nesse dia o sol veio de rachar, como se rejeitasse o inverno. Pobre de quem se levanta cedo demais e sai ainda de madrugada; sai sempre com muito agasalho, uniforme de esquimó, porque é inverno e inverno pede tudo isso. Puro azar. Com Aryane isso nunca acontece. Sua vida é outra. Sair cedo, nunca. Se tivesse que sair cedo, nem iria dormir. Se dormisse, onde encontraria tempo para se arrumar? “Se liga, meu, esse charme não vem de graça...”
Enquanto os outros se derretiam com o sol escaldante das duas da tarde, Aryane desfilava a magia de suas curvas e enchia de graça a paisagem sem graça da Raposo Tavares.
Ela sabia dos olhares. Sabia de tudo como quem não sabe de nada. Ela sabia e lamentava que fossem tão covardes. Deixou cair a capinha rosa do celular e andou ainda um bom pedaço até fingir surpresa.“Ai, saco!” – os cabelos soltos eram velas sopradas pelo vento escasso naquele oceano de concreto. Semicerrou os olhos e, num leve meneio de cabeça, iniciou a meia-volta.
Os olhos da tarde a devoravam.
Seus passos, vistos de frente, denunciavam outros encantos. Aryane tinha noção exata da magia de suas curvas e enchia de graça a paisagem sem graça da Raposo.
Parou diante do objeto que lhe escapara tão propositadamente. Num misto de solenidade e malemolência, ia se curvando quando uma mão ágil e cavalheiresca se antecipou:
- Você deixou cair...
O verde dos olhos que a fitavam poderia salvar as suas intenções naquela tarde.
- Foi, num é? Ah, brigada. Tô sempre perdendo alguma coisa.
Ficaria só nisso, porque o gentil de mãos ágeis parecia ter pressa.
- Se tiver tempo, tem um sorvete de massa ali que é uma delícia – sugeriu ela, num sussurro infalível, desses que ensurdeceriam o coração mais alheio de todos os que já envolvera. – Se tiver um tempinho pra gente, é claro.
Não houve resposta. O gentil de mãos ágeis ia longe. “Frouxo!” – enfatizou, numa entonação que estremeceria o coração mais apático de todos os que ela já envolvera.
Aryane arrumou os longos cabelos e retomou o desfile, suavemente, porque não tinha mesmo hora marcada com ninguém. Era ainda muito cedo. Até o final daquela tarde certamente encontraria quem se dispusesse a “patrocinar” os sapatos que cobiçava desde ontem quando estivera na Oscar Freire.
Aryane era vela, barco e poesia naquele oceano de concreto e os olhos da tarde a devoravam, até que se perdeu na próxima curva da Raposo Tavares.
São Paulo, 7 de agosto de 2013 - 19h15