Rio de Janeiro, agosto de 2011
Não obstante soar sombrio para o padrão fonético brasileiro, na Música e na Ópera o nome Nabucco representa uma referência de beleza. Fui ao Theatro Municipal do Rio de Janeiro conferir esta maravilha. Eu estava lá na penúltima quarta-feira de julho de 2011, em frente ao Theatro Municipal. Com o celular na mão, eu aguardava ansioso a abertura dos portões do teatro. Joyce, uma querida amiga, antecipara a compra dos ingressos. Enquanto eu a aguardava, aproveitava para espiar a suntuosidade do Theatro Municipal. Desde que reinaugurara em 2008, eu não voltara lá.
Os casais elegantes da terceira idade desciam de seus belos carros, vez e outra ajudados pelos seus bem vestidos choferes. Eu, submerso em minha introspecção, observava atento e distante - apesar de misturado ao povo à frente do Theatro Municipal - este desfile chique de belos vestidos e ternos da classe rica da cidade.
Enfim, fui resgatado desta observação com a chegada apressada e sorridente da amiga Joyce, e logo entramos no teatro.
O nosso assento ficava na galeria cinco, que de tão alta, dava a impressão, no primeiro momento, que íamos despencar no solo lá embaixo. O interior do teatro estava lotado. Aquele espírito de arte parecia vagar por todas as galerias iluminando o olhar feliz, atento e austero da plateia, que ajeitava-se tentando evitar os rangidos das poltronas novas do teatro. Lembrei à minha amiga que por mais que os reformadores do teatro tentassem, não conseguiram eliminar completamente o ruído destas poltronas.
Os músicos aqueciam suas embocaduras e dedilhados executando rápidas escalas que formavam, tacitamente, uma "ouverture francesa de música contemporânea atonal" que, por sua vez, exprimia uma surpresa oportunista, por não constar no programa que eu comprara ao preço de dez reais, na entrada do teatro.
Por mais que eu tentasse manter alguma naturalidade, o meu coração era tomando pela emoção e ansiedade. Eu não conseguia eliminar um sorriso espontâneo de meus lábios, que, certamente, logo seria desfeito pelas lágrimas enciumadas. Na disputa entre lágrimas e sorrisos, aquelas sempre enxotam qualquer resquício de sorriso de meu rosto apropriando-se de minha alegria e emoção, quando estou diante da Arte.
A cortina, vermelha e pesada, roubava para si a apreciação de toda a plateia e, certamente, sentia-se orgulhosa por fazer parte do espetáculo, aguardando a sua vez de abrir-se lentamente para apresentar os atores da peça. Joyce parecia estar impressionada pela presença suntuosa desta cortina, pois comentara duas vezes sobre ela.
A clarineta, com seu belo filado, irrompia rasgando verticalmente a harmonia da orquestra, que ainda se aquecia e roubava a apreciação da plateia. Cresci tocando clarineta e ainda guardo um referencial carinhoso e saudosista. Era impossível não voltar o rosto automaticamente para o poço de onde vinha aquele límpido e inconfundível som.
A voz do apresentador encheu o teatro sinalizando o início do espetáculo. Palmas ecoaram por toda parte, na entrada do maestro Silvio Viegas para reger o espetáculo. De onde estávamos somente conseguímos avistar, de longe, a sua silhueta.
O som forte, agora da overture original, parecia querer nos arrancar os pensamentos para concentrar nossas expectativas no palco, a espera do abrir das cortinas. De fato, fiquei concentrado e em suspensão, ouvindo a excelente Orquestra Sinfônica do Theatro Muncipal do Rio de Janeiro, que tinha em seu corpo, para completar o contingente necessário a execução da obra de Verdi, os, também, excelentes músicos da Banda Sinfônica do Corpo de Fuzileiros Navais.
Logo um cenário magistral foi descortinado aos olhos arregalados da plateia. Este cenário maravilhoso teve a concepção e direção de André Heller-Lopes, que, acredito, estava assistindo tudo aquilo com os dedos cruzados.
Impossível não exclamar um “Oh”, e foi isto que ouvi de minha amiga extasiada, tal o vislumbre da suntuosidade do cenário.
As mulheres do coral dos escravos hebreus estavam cobertas com um longo véu branco transparente. Os homens, vestidos de preto, retratavam o sofrimento deste povo subjugado pelos babilônios. A iluminação focava o coral criando um contraste do clássico preto e branco. Alguns homens estavam de costas para o coral. Eles socavam um grande portal de madeira de duas folhas, que mantinha todos presioneiros presos naquele local.
Impossível não se emocionar com a belíssima e grave melodia em uníssono de Verdi. O timbre das vozes masculinas impunha-se ao timbre feminino, mas sem ofuscá-lo demasiadamente. O arranjo instrumental era suave e discreto, com os violinos interferindo, vez outra, como se quizessem lembrar aos cantores que eles estavam lá, para preencher as pausas da melodia.
Da posição em que eu estava, podia ver perfeitamente os dois baixos no fundo do fosso da orquestra. Os músicos tiravam de letra a execução da partitura. De vez em quando eles conversavam entre si sem se preocuparem com a plateia nas galerias acima. Achei magistral esta pequena irreverência pois ressaltava para mim, que aquilo não era uma gravação, mas resultado de muito suor. Era ao vivo.
Primeiro Ato – Jerusalém
Jerusalém está cercada pelas tropas comandadas por Nabucodonosor, rei da Babilônia. Os hebreus, os levitas e as virgens imploram a ajuda de Joevá para que o templo seja poupado (Gliarrendi festivi). O grão-sacerdote Zaccaria os exorta à coragem, pois traz consigo Fenema, filha de Nabucco, como refém (Sperate o figli).
Segundo Ato – O ímpio
Abigalle descoriu um documento que atesta sua verdadeira origem. Ela não é filha mais velha de Nabucco, mas a filha de uma escrava. Sem se perturbar, ela só tem ódio por Fenema e Nabucco, que a afastou do campo de batalha e confiou a regência a Fenema.
Terceiro Ato – A Profecia
Celebra-se a glória da rainha Abigaille, que no trono recebe do grão-sacerdote de Baal a sentença de morte de todos os prisioneiros hebreus, inclusive Fenema. Finge hesitar quando aparece Nabucco, perturbado. Ela lhe pede para assinar a sentença. Nabucco hesita. Abigaille zomba de sua fraqueza. Nabucco assina, condenando a sua própria filha. Quer se retratar e a trata como escrava.
Quarto Ato – O Ídolo Partido
Acordando de um pesadelo, Nabucco pede sua espada e seu cavalo para atacar Sião. Acredita ouvir gritos de guerra, mas pecebe que é o cortejo que conduz sua filha à morte. Desesperado implora ao Deus dos hebreus, jurando reconstruir o tempo destruído. Neste instante chega Abdallo, velho oficial, acompanhado por soldados fiés ao rei. Fenema e os hebreus são conduzidos à execução.
Indo embora
As três horas que se seguiram, interrompidas por dois breves intervalos, foram de puro prazer e deleite. Quando já estávamos quase na terceira hora, alguns ouvintes julgando que as finalizações enfáticas da ópera representavam o final do espetáculo, aplaudiam efusivamente, sendo seguidos por outros desavisados.
Próximo à terceira hora, confesso, eu já estava dolorido por estar sentado por tanto tempo. Depois eu soube que este longo tempo foi em função da execução completa da peça, sem cortes.
Ao final da peça todos aplaudiram à exaustão os artistas, então pude levantar-me e sair. A minha querida amiga expressava um semblante de plena satisfação. Agradeci a ela os ingressos antecipados, e despedimo-nos com um beijo.
Já era mais de meia-noite quando cheguei a minha casa. Dormi satisfeito. A melodia grave e uníssona do coral de escravos hebreus continuou repercutindo em minha memória por muito tempo.
Assisti um espetáculo inesquecível no Theatro Municipal do Rio de Janeiro.
Ficha técnica:
Direção Musical e Regência: Silvio Viegas
Concepção e Direção de Cena: André Heller-Lopes
Barítono: Rodrigo Esteves e Rodolfo Giugliani
Soprano: Eliane Coelho
Baixo: Savio Sperandio, Carlos Eduardo Marcos, Carlos Eduardo Marcos
Soprano: Eliane Coelho, Celinelena Letto
Mezzo-soprano: Denise de Freitas
Tenor: Eric Herrero, Jacques Rocha,
Figurinos: Macelo Marques,
Cenografia: Renato Theobaldo
Iluminação: Fábio Retti
Os intérpretes
Rodrigo Esteves, barítono (Nabucco)
Rodrigo Esteves, Barítono
Atualmente morando na Espanha, o barítono brasileiro Rodrigo Esteves fez seu debut em 1998, como Shaunard, em La Bohème, no Teatro de la Zarzuela de Madri. No ano seguinte, assumiu o papel de Alfonso XI em La Favorita, em Pamplona, Espanha. Em 2002, interpretou Mercutio, em Romeu e Julieta, na Espanha, ao lado de Ainhoa Arteta (Julieta) e Fernando de la Mora (Romeu). Seguiram-se Dandini, em La Cenerentola, no VII Festival de Ópera do Amazonas, eCarmina Burana, em Madri. Na Itália, fez Germont (La Traviata) e Almaviva (Le Nozze di Figaro), em Spoleto. Outros papéis de seu repertório são Marquês de Posa (Don Carlos), Marcello (La Bohème), Valentin (Fausto), Ford (Falstaff), Macbeth (Macbeth). Apresentou-se ainda no Japão, México, Argentina e Brasil.
Rodolfo Giugliani, barítono (Nabucco)
Rodolfo Fiugliani, Barítono
Aluno de Benito Maresca, o jovem barítono paulistano de 26 anos Rodolfo Giugliani, que iniciou seus estudos de canto aos 14 anos, acumula diversos prêmios em sua carreira, incluindo o de finalista do IX Concurso Jaume Aragall, na Espanha, além do Concurso Internacional de Canto Bidu Sayão, Concurso Brasileiro de Canto Maria Callas e Concurso de Canto Aldo Baldin. Em agosto do ano passado, foi premiado em 2º lugar no concurso Vozes do Brasil – Prêmio Nacional de Canto Lírico do Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Em seu repertório incluem-se as óperas Rigoletto, Attila, Madame Butterfly, Le Villi, Tosca, La Traviata, Gianni Schicchi, I Pagliacci, Carmen, Cavalleria Rusticana, oratório Colombo e Lo Schiavo.
Eliane Coelho, soprano (Abigaille)
Eliane Coelho, Soprano
A carioca Eliane Coelho mudou-se para a Europa há mais de trinta anos. É a mais importante cantora lírica brasileira, de expressiva carreira internacional. No Brasil, ingressou primeiramente no curso de arquitetura até se dedicar exclusivamente ao canto, estudando com Solange Petit-Reneaux. Estudou ainda na Escola Superior de Música e Teatro de Hannover, na Alemanha. Nesse país manteve carreira profícua, fazendo parte do elenco da Ópera de Frankfurt. Desde 1991 é membro fixo do elenco da Ópera de Viena, onde já interpretou grandes obras do repertório operístico, tais como Maria Stuart, Idomeneo (Elettra), Otello (Desdemona), Aida, Jerusalém (Hélène), Madame Butterfly, Tosca, La Bohème (Mimi), Il Trovatore (Leonora), Salomé, Fedora, Herodiade (Salomé), Arabella. Na mesma instituição, foi condecorada com o título Kammersängerin, considerado de grande relevância, já que somente os principais profissionais da ópera recebem tal condecoração.
Sua experiência, domínio de amplo repertório e elogiosa determinação dramática fizeram com que Eliane tenha participado de concertos ao lado de nomes de extrema importância, como Plácido Domingo, José Carreras, Bryn Terfel e Samuel Ramey. A soprano também faz recitais solos, cerca de 40 ao ano. Incansável, dedica-se ainda à música de câmara, sendo solista frequentemente convidada em vários concertos. Sua invejável atuação internacional compreende apresentações nas melhores casas de ópera da Europa, principalmente da Alemanha, França, Itália e Áustria.
André Heller-Lopes, direção
Especialista em ópera, André acumula extensa carreira no Brasil e no exterior. É Professor do Departamento Vocal daEscola de Música da UFRJ desde 1996, onde cursou também o Mestrado. Sua monografia, Vozes Brasileiras, foi a primeira a debruçar-se de forma detalhada sobre a vida de cantoras líricas europeias que vinham ao Brasil entre 1844 e 1852. Recentemente, defendeu Doutorado junto ao Kings College, de Londres. Bolsita da CAPES, defendeu em sua tese o universo operístico brasileiro do século 19, desta vez ao pouco conhecido movimento pela Ópera Nacional, entre 1857 e 1863. Em 2003 tornou-se Coordenador de Ópera da Prefeitura do Rio, desenvolvendo extensa programação dedicada ao público jovem, durante cinco anos. Ganhou, por dois anos consecutivos, o Prêmio Carlos Gomes de melhor diretor cênico. Espetáculos como Diário do Desaparecido e Savitri (CCBB-SP e DF) e Ariadne em Naxos (TMSP) foram aclamados pela crítica especializada. Sua mais recente encenação, Tosca, no Kleinesfestpielhaus (Haus für Mozart), em Salzburgo, foi descrita como um “retumbante sucesso”, colhendo elogios de pública e critica. No Brasil destacam-se suas encenações de espetáculos tão diversos como os ciclos ‘Palavras Brasileiras’, ‘Viva Verdi’ e ‘Portinari: Música e Poesia’(CCBB RJ e SP), Samson et Dalila, Andrea Chenier e La Fille du Régiment (TMSP) e Idomeneo (TMRJ), Cavalleria Rusticana e A Ópera dos 3 Vinténs (FAO), Mozart & Salieri (Festival de Campos do Jordão), Der Schauspieldirektor(OSB), Falstaff e Der Rosenkavalier (OSESP), Der Zwerg (OPS). Idealizou ainda a criação de novas óperas brasileiras (Caixeiro da Taverna, Domitila, Anjo Negro). Trabalhou na San Francisco Opera, Metropolitan Opera de NY e Royal Opera House (Londres) e Teatro Nacional de São Carlos (Lisboa). Ao longo de duas temporadas no Covent Garden, dirigiu O Imperador de Atlantis (Viktor Ullmann) e Diário do Desaparecido (Janácek), trabalhando ainda na equipe de direção de 15 óperas com artistas como Domingo, Mattila, Villazon, Graham, Terfel, Hampson, Hvorostovsky, Allen, Ramey, e ao lado de diretores como Copley, K. Warner, Miller, Martone ou Armfield. Mais recentemente dirigiu O Barbeiro de Sevilha(Iford Arts Summer Festival, UK); Yerma in concert de Villa-Lobos (Berlim/Lisboa/Paris); além de Dido & Aneas, Trouble in Tahiti e L’Occasione fa Il ladro (Teatro São Carlos) e Tosca (Kleinesfestspielhaus, Salzburg).