Ira; capitalizando o pecado!

Ira; capitalizando o pecado!      

 
          Cá comigo, tenho que dentre os sete pecados capitais aquele que se mostra mais difícil, para não dizer impossível de ser evitado é a ira. Os outros todos, com maior ou menor esforço, são passíveis de expurgo em nossas atitudes, a partir de uma mudança de comportamentos ou modos de pensar. Quanto à ira, entretanto, isso não se aplica. Afinal, é da natureza humana reagir às frustrações de forma automática e intensamente emocional, quando não, insanamente passional.

          Tomemos, por exemplo, uma situação extremamente comezinha: aquela pacífica idosa, carola até as entranhas, emérita benfeitora e exemplo de sabedoria e mansuetude para a sociedade em geral, salta da cama numa manhã qualquer e, inadvertidamente, ainda sonolenta, dá com o dedinho do próprio pé no pé da própria cama. O que ela sente? O que ela diz? Como ela reage? Alguns dirão que ela entoará louvores aos céus pela bênção daquela provação à sua fé. Outros, tão cínicos como eu, não têm dúvidas de que ela, rangendo os dentes, de olhos vermelhos e espumando uma baba verde mandará a cama, o pé e até aquela malfadada manhã para lugares inomináveis, ou posturas sequer constantes do Kama Sutra e indizíveis por aqui.

          Essa sensação que, vez por outra, todos nós alimentamos de que algo ou alguém deva ser sumariamente execrado, esganado, expelido, esmagado ou estraçalhado até a extinção, obviamente, só pode ser qualificada como algo violento e negativo. Contudo, isso libera uma energia tremenda e que, dadas determinadas circunstâncias, pode ser direcionada para algo positivo.


          Analisemos uma outra situação não menos banal que o primeiro exemplo: outra senhora; não tão velha quanto aquela, mas já bem gasta; não tão mansa, mas só apática; após anos e anos de um casamento que se arrastava modorrento, vê-se traída pelo canalha do marido que resolveu que ainda era tempo de viver de maneira estimulante e prazerosa. O que ela sente? O que ela diz? Como ela reage? Passados os primeiros momentos de choque, tristeza e decepção, partindo do inevitável desejo de capar com as próprias unhas o cachorro traidor, transforma essa energia destruidora em brios e acaba livrando-se do confortável comodismo de rainha do lar, chacoalhando a poeira do amarrotado espírito, espanando as teias de todas as curvas e fendas do corpo e, assim, se descobre novamente mulher, cheia de encantos e atrativos – e vai tomar o marido de outra para, enfim, ser feliz para sempre.


          Ou seja, a raiva, o ódio e o rancor podem, sim, ser transmutados em força motriz que impulsione a reações que, no final, geram resultados positivos. Contudo, tal qual o petróleo, é uma fonte energética útil, mas que polui. A ira, seja lá qual for sua vertente, embaça a visão, transtorna o raciocínio e envenena a alma. Melhor procurar alguma outra energia, renovável e não poluente, que propulsione os dínamos da existência.


          Eu, de minha parte, apesar de ser injustamente acusado de rabugice crônica, só posso dizer que é do meu feitio andar pela vida com o sarcasmo à ponta da língua, porque ferina, aqui, só ela – e ameaçadora, só minha verve. Recuso-me a confirmar que também eu, às vezes, me zango, porque isso seria óbvio demais. Quando muito, admito ficar docemente putaquiparilisado e reajo desferindo palavras por aí. Só isso!