Fé demais cheira mal

Fé demais cheira mal
(Crônica da série: “Assuntos que não se discute”)

 

          É lamentável que já estando a humanidade em pleno Século XXI, ainda permaneça, de certa forma, presa num obscurantismo tipicamente medieval. Parece não haver dúvidas que se o homem conseguiu progredir a passos largos em termos científicos e tecnológicos, continua na contramão do bom senso, já que marca passo no que diz respeito à evolução ética e moral de suas posturas.


          Fica difícil aceitar que, simplesmente por sua natureza, o ser humano não seja dado a abraçar com fervor os aspectos mais sublimes de sua ambígua e contraditória essência. Nesse sentido, fica claro que, ao longo da história, as religiões fracassaram e, ainda, continuam fracassando em seu suposto papel de fomentar a ligação com as esferas metafísicas da existência.


          Não quero eu, aqui, propor a discussão sobre a plausibilidade ou não de que haja um Deus, ou qualquer outra forma de expressão que represente um princípio originário e regulador de todas as coisas. Isto, realmente, é uma questão de percepção individual, de caráter personalíssimo e, cada um com sua consciência deve conciliar-se com as dúvidas que tal questão possa suscitar.


          Entretanto, não se pode, por isso, afastar-se da idéia de que, no eterno embate entre o bem o mal, devam prevalecer os valores do que seja bom e justo. Afinal, se Deus existe, Ele deve representar, de alguma forma, o que seja essencialmente bom e consequentemente justo e, assim, estimular as suas criaturas nesse sentido.


          Portanto, se a fé em Deus não pode ser tida, em si, como algo negativo, já não se pode dizer a mesma coisa quando ela extrapola os limites de uma divina inspiração para espargir-se sob a forma de uma crença em pessoas que se dizem intérpretes de regulamentos ditos sagrados e que se apresentam como interlocutores de entidades representativas do poder cósmico central.


          A religião, que seria a base e fundamento das igrejas, evidencia-se como uma manifestação essencialmente humana e, assim, impregnada, infelizmente, daquilo que o homem traz de menos louvável. Em nome da fé, religiões vêm servindo como meio de manobra das massas desavisadas na perpetração de deletérias atitudes, sustentando ilegitimamente o poder de alguns e fomentando o nefasto enriquecimento sem causa de muitos.


          Eu poderia desperdiçar muito tempo caso resolvesse discorrer em detalhes sobre papas omissos, padres pedófilos, aiatolás bélicos, mulás terroristas, rabinos cleptomaníacos, lamas politiqueiros, pastores estelionatários, curandeiros de meia pataca ou reles pajés caricatos. Entretanto, isso só serviria para atiçar discussões no varejo sobre um problema muito maior que se prolifera no atacado.


          Já deveria ser óbvio que ninguém detém o comando da verdade e que não há pauta prefixada que a defina de forma inquestionável. Nenhum livro tem o monopólio das verdades, porque elas se manifestam somente em sinceras e boas atitudes para com os semelhantes. Não há povos escolhidos dos quais se possa fazer parte, ou terras prometidas que tenham proteção ou favorecimento divino. Tampouco há seitas ou cultos aos quais se possa aderir que tenham o condão de atribuir a alguém condição tal que o torne melhor do que de fato seja. São irrelevantes as culturas de origem, os solos que servem de berço, as escrituras que se declame ou os templos que se frequente. Quem é do bem, faz o bem; quem não é fica irremediavelmente constrito na pequenez de sua própria ignorância.


          Certamente, infelizes são aqueles que não têm uma fé em algo divino para se socorrer nos momentos de angústia. Contudo, mais infelizes, ainda, são aqueles que depositam indevidamente essa fé nos hipócritas que se apresentam como profetas e guias e se enriquecem com o suado fruto do trabalho alheio. Afora, é claro, as multidões de créus que, em nome de uma falsa santidade, usurpam e pilham o que não lhes pertence ou, pior, matam e morrem como expressão de fé.