Um brinde solitário

Um brinde solitário

Hoje, acordei pensando em meu pai. Já faz muito tempo que ele não está mais entre nós, mas ele é, sem dúvida, a figura humana que mais marcou meu modo de ser.

O velho Obed era fogo! Foi a única pessoa que conheci que, mesmo aos setenta anos, época em que nos deixou, conseguia ser precoce. Dentre suas principais virtudes estavam uma inteligência intuitiva, um bom humor refinado e uma bondade que não media conseqüências.

Ele só estudou até o quarto ano primário, mas foi um autodidata por excelência. Poeta, desenhista, pintor, escultor... artista congênito. Adorava as lidas manuais e fez-se pedreiro, encanador, carpinteiro, eletricista... traduzia com o suor e as próprias mãos aquilo que inventava. Culto, desfilava seu saber sobre história, geografia, ciências sociais e políticas nas conversas mais banais.

Porém, aquilo que não me deixa esquecê-lo um dia sequer na vida, são duas características marcantes. O homem tinha uma persistência que beirava à teimosia e, aliado na descrença no impossível, enfrentava as situações sem considerar sequer por um segundo a possibilidade de desistir. Colecionou vitórias e derrotas, mas era um otimista por convicção e fazia disso uma profissão de fé.

Lembro-me que, quando eu era ainda um meninote, ele se pôs a querer corrigir minha caligrafia - que ainda hoje é horrível. Chegou uma noite com um caderno pautado para exercícios de caligrafia e entregou-me sem maiores cerimônias dizendo apenas que eu o devolvesse, dali dois dias, preenchido. Colhi a brochura e, em um canto sozinho, pus-me a folheá-la. No topo de cada uma das quarenta e oito páginas ele havia escrito, com sua caligrafia impecável e a caneta tinteiro, um dito popular diferente. Não foi difícil adivinhar que sua intenção era de que eu preenchesse cada uma das páginas repetindo, em cada linha, a frase que as encabeçava.

Com certeza a persistência de meu pai não encontrou eco em minha disciplina, até porque os garranchos que espalho por aí afora denotam meu total desinteresse pela estética das letras que grafo manualmente. Entretanto, na sua sapiência instintiva, meu pai conseguiu inculcar-me códigos de conduta que estão perpetuados na sabedoria popular e ancestral.

Hoje, já estando eu adulto, mesmo diante das piores situações cotidianas, não posso deixar de lembrar que "mais vale acender uma vela que amaldiçoar a escuridão". Penso nisso, lembro do vigor impermeável do velho Obed, analiso as opções e vou à luta.

Acordei esta manhã e, mais uma vez, reverenciei a memória de meu saudoso pai. Estou atravessando uma fase da vida com um sem fim de frustrações e desafios que fazem minha existência parecer um barquinho de papel a flutuar por "mares nunca d'antes navegados". Saí da cama meio de ressaca, ainda embriagado pelo torpor de uma noite mal dormida. Mas o velho Obed, tenaz e sorridente, vagava em meu pensamento e eu podia ver com clareza a folha daquele caderno de caligrafia onde ele um dia ensinou-me: "Se a vida der-lhe um limão, faça dele uma limonada".

Sou um homem de meia idade e meu paladar se alegra muito mais se houver alguma mistura etílica em minhas beberagens. Portanto, peguei o limão que a vida me entregou e com ele preparei uma caipirinha. Não tenho mais meu pai por perto para dividir o prazer de saboreá-la e, confesso, que brindes solitários são meio melancólicos. Mesmo assim, um brinde ao futuro que sonhamos e à oportunidade de podermos sempre perseverar em construí-lo.

Tim-tim!