Pão

In memoriam Luanda Lescano

A menina estica o braço, abre a mão, os delicados dedos improvisam uma coreografia. A mão do pai rasga o pão. A crosta dourada crepita em surdina, libera o morno aroma do miolo tenro. O homem deposita o pedaço de pão na mão da filha. A menina recebe a dádiva com gesto natural. Seus dentes repetem o som ao entrar em atrito com a casca, ela sorri, os olhos fixos no rosto do homem. Ele a observa. Seus olhos parecem procurar algo muito distante no espaço, ou talvez alguma imagem antiga. Sem o saber, ambos vivem um ritual.

Os gestos de dar e receber o pão é dos mais antigos da vida familiar, pois o pão é o primeiro alimento fabricado pelo homem. Até aquele momento fundador, a espécie se alimentava com o que conseguisse colher da natureza. A cozinha limitava-se a cozer verduras, raízes, a assar a carne da caça e da pesca.

Houve uma vez em que a mulher plantou a semente e a família deu início à cerimônia da espera da maturação. A família colheu a espiga, moeu o grão. A mãe fez massa da farinha e a levou ao forno de onde saiu tranformada em pão. Não é improvável que naquele dia este fosse o único alimento consumido, para melhor apreciá-lo.

É possível que aquele dia prefigurasse muitos outros em que o pão, tornado símbolo, se multiplicasse nas mãos do pai, do chefe da tribo, do messias. Desde então sua presença, ou ausência, revela a condição dos que reúnem em torno da mesa.

Talvez o homem pense nisto, sequer de modo obscuro, ao entregar o pão e ver a filha apanhá-lo com seu sorriso de criança e sem hesitar levá-lo à boca. Talvez o pai tente imaginar se aquele instante virá a fazer parte das lembranças da menina quando ele não mais estiver no mundo. Talvez ela guarde para sempre o olhar do pai no momento de oferecer.

O silêncio e a lentidão com que se deu o ato permitem estas especulações.