A MARCHA TURCA - Abril de 1915

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Num domingo de dezembro de 1914, um despreocupado grupo de estudantes universitários comemorava a formatura da bela Taletha Amiryan, neo-doutora em psicologia, hóspede de um conceituado educandário na antiga cidade de Bolonha, na Itália do Norte. A amenidade do discreto convívio foi interrompida por um carteiro que entregou um telegrama trazendo uma triste notícia: o Dr. Elif Demir havia falecido e Taletha estava sendo convidada a retornar na Turquia para tomar posse da modesta herança deixada pelo seu generoso benfeitor.

O termo generoso não se referia tanto aos poucos bens que o defunto farmacêutico mencionara em seu testamento, mas ao fato que, durante o “pogrom” de 1909, no qual cerca de 30.000 armênios haviam sido exterminados, o velho profissional, apesar de turco e muçulmano, amparou a cristã Taletha, tratando-a come se fosse a sua própria filha durante quase dois anos. Em seguida custeou os seus estudos na Itália onde a talentosa Amiryan pôde viver em paz, sem medo de sofrer as perseguições que haviam causado a morte de seus pais e da irmã mais velha, Lucine, durante o massacre de 1909.

O Dr. Demir, viúvo, sem filhos, e animado por um sincero afeto, pretendia, de uma certa forma, expiar os crimes cometidos por seus correligionários mostrando à órfã que não todos os turcos compartilhavam a política persecutória do governo ultranacionalista de Istambul. Destarte, Taletha aprendeu que a bondade ou a perversidade eram características individuais que não dependiam nem da nacionalidade e nem do credo dos seres humanos: o carinho que sentia por Elif era real e espontâneo e, ao receber o telegrama, decidiu organizar a viagem de volta na cidade anatólica para, pelo menos, homenagear o túmulo de seu benfeitor e, se possível, procurar emprego come psicóloga no hospital local, lotado de feridos traumatizados pela barbárie da guerra.

Embora a Itália ainda estivesse neutral, boa parte da Europa havia entrado no imane conflito e os transportes marítimos eram limitados; mesmo assim, conseguiu se embarcar para Esmirna onde chegou no final de março do ano seguinte. Pegou um trem que, devido à desorganização gerada pela necessidade de movimentar as tropas demorou dois dias antes de alcançar a destinação final. Durante a viagem, Taletha, conversando com outros passageiros, principalmente turcos, teve a possibilidade de captar um clima de hostilidade latente em relação aos armênios, um rancor injustificado e generalizado; felizmente não faltavam os que os defendessem, mas eram minoria e nem sempre se atreviam a manifestar abertamente as suas opiniões.

Tendo uma carta de apresentação da Diocese de Bolonha, foi hospedada na Casa paroquial onde vivia um velho padre auxiliado por um jovem missionário espanhol. Os dois sacerdotes tentavam, sem muito sucesso, de fornecer uns rudimentos de educação ao pequeno Vadim, um pivete de origens desconhecidas, irreverente, sem religião e sem respeito pela autoridade. O menino, costumava desaparecer por dias e dias e, frequentemente, se juntava a grupos de infratores que cometiam furtos nas casas tanto dos cristãos como dos muçulmanos, depredando os cemitérios e até os templos.

- Você não sente remorso de roubar objetos sagrados na casa do Senhor? - perguntou Taletha.

- Eu não tenho e não temo nenhum Deus – respondeu afoito o pivete.

Mas tanta ousadia e tanto desprezo mal mascaravam a angústia, toda interior, do mocinho, e Taletha entendeu que aquela rebeldia era gerada pela falta de um verdadeiro lar, e que de nada adiantavam os castigos e as punições: o do que Vadim mais necessitava era um verdadeiro amor de mãe e, nas semanas que se seguiram, embora o repreendesse quando necessário, sempre mostrou compreensão e respeito. Provavelmente, com o tempo, a jovem teria conseguido civilizar o pequeno selvagem, mas o tempo concedido pela História estava se esgotando rapidamente.

Um dia, no final de abril, centenas de tropas circundaram completamente o bairro dos armênios e começaram a expulsar as famílias de suas casas, com coronhadas, atirando nos que opunham resistência. Os soldados demoraram o dia inteiro para esvaziar totalmente os quarteirões dos supostos inimigos que foram temporariamente recolhidos num descampado circundado por uma cerca de arame farpado.

Com o raiar do dia, esse povo miserando teria sido empurrado em direção do nada, numa daquelas tristemente famosas “marchas turcas”, que tão dolorosamente contrastavam com a alegre sonata de Mozart de 1783. Sem alimentos, sem água, sem medicamentos, sem uma hora de repouso, os deportados teriam falecido em menos de uma semana. As mais sortudas eram as crianças pequenas que, desidratadas, morriam em menos de 48 horas. Mas o destino pior era destinado às mulheres, principalmente às mais novas e bonitas, estupradas até a exaustão, brutalizadas, torturadas e, enfim, esquartejadas ou decapitadas. As que tentavam fugir eram crucificadas ou queimadas vivas.

Taletha estava ciente do que lhe teria acontecido, possivelmente a mesma sorte de sua irmã Lucine; assim, movida mais pelo desespero do que pela esperança de salvar a vida, resolveu arriscar a fuga durante a noite.

Aproveitando da escuridade, subiu num carro que transportava cadáveres fora do descampado, mas a sua tentativa foi vista por um sargento que, acenando para um grupo de Hamidye, ordenou que alguém perseguisse a fugitiva. Os Hamidye eram tropas irregulares compostas principalmente por elementos violentos: bandidos, presidiários, estupradores, pedófilos, doentes mentais e outros criminosos brutais. Um deles, um indivíduo encorpado, alto, com traços boçais, correu atrás da jovem, armado com uma pesada cimitarra. Quando Taletha se deu conta que estava perto de ser alcançada, pulou da carruagem e, instintivamente, correu na direção do que restava da antiga igreja cristã edificada pelos Bizantinos, pensando que naquele ambiente vasto e obscuro teria sido mais fácil encontrar um esconderijo.

A visão do templo arruinado e depredado, do altar-mor bastante demolido, do belo crucifixo carbonizado, das estátuas dos santos despedaçadas, lhe encheu o coração de uma profunda tristeza; além disso, não havia um canto oportuno para se esconder e, come se fosse guiada por uma voz interior, entrou numa capela lateral onde a estátua da Virgem permanecia intacta, decerto pelo fato que até os muçulmanos mais fanáticos respeitavam a mãe de Jesus. Quando percebeu que também o gigantesco Hamidye havia entrado na igreja, se dispôs a aceitar o martírio e começou a cantar, com a sua magnífica voz, o hino medieval "Veni Creator Spiritus":

Veni, creator Spiritus

mentes tuorum visita,

imple superna gratia,

quae tu creasti pectora.

O seu rosto pálido, iluminado pela luz da Lua, parecia o de uma figura angelical e até o hediondo assassino, por um momento, ficou hipnotizado diante de tanta beleza e suavidade. Mas a desorientação inicial durou apenas um minuto e o indivíduo, atraído e excitado pela graça da jovem, se aproximou com a arma na mão dizendo:

- Você se parece muito com uma cadela armênia, uma bela ruiva de olhos verdes com a qual me diverti bastante cerca de seis anos atrás. Depois de uma noite durante a qual fiz dela tudo o que queria, ela me suplicou para tirar a sua vida e eu a degolei com o maior prazer. Agora vou fazer o mesmo com você!

Taletha se deu conta que o monstro estava falando de sua irmã Lucine, basicamente a única jovem ruiva e de olhos verdes que vivia naquela comunidade. Com os olhos cheios de lágrimas olhou para o alto e continuou a cantar:

Qui diceris Paraclitus,

altissimi donum Dei,

fons vivus, ignis, caritas

et spiritalis unctio.

O Hamidye, com um gesto de supremo desprezo, baixou as calças e, com uma risada sarcástica que mostrou seus dentes podres, berrou:

- Venha cá, minha pombinha que vou lhe dar essa delícia…

- Você não vai dar nada de nada! - exclamou Vadim segurando um revólver – E lhe garanto que não estuprará mais ninguém!

Antes que aquele ser desumano pudesse reagir, o moleque disparou dois tiros no baixo ventre e o Hamidye, com as partes baixas ensanguentadas se ajoelhou gemendo e chorando igual um bebê.

- Prepare-se par ir ao paraíso dos muçulmanos - murmurou o moço enquanto apontava a arma para a cabeça do desgraçado.

- Não, não! - gritou Taletha - não derrame outro sangue, por favor. O sangue chama o sangue, devemos perdoar quem nos proporciona tanto mal, e... tenho certeza que a minha irmã também perdoaria o seu carrasco.

- Tá bom, anuiu Vadim, mas vamos logo embora antes que cheguem outros soldados.

O rapaz segurou a mão da jovem e a levou até a abside da igreja onde, atrás de um painel do coro, havia uma estreita passagem secreta que levava fora do bairro, em outro local da cidade. O túnel terminava no porão de uma casa que, antigamente, abrigava um convento. Vadim apontou uma bela casa moderna.

- Está vendo, Taletha, aquela é a residência do cônsul dos Estados Unidos. Lá ninguém irá lhe importunar.

- Sim, meu precioso amigo, mas há duas praças vigiando o portão.

- Não se preocupe… deixe comigo.

- O menino se aproximou dos militares turcos, conversou um pouco, sacou do bolso um embrulho e o mostrou para os dois. Logo em seguida acenou para a moça e ela, temerosa, saiu do canto escuro e foi na direção da casa do diplomata. Os soldados embolsaram o conteúdo do pacote fazendo vista grossa enquanto Taletha tocou a campainha da residência do americano; quando se virou para agradecer e abraçar o seu pequeno salvador, Vadim já havia desaparecido como sombra entre as sombras daquela noite infernal.

O cônsul, um verdadeiro cavalheiro, fez acomodar a moça e a apresentou a Mary, a sua esposa, que logo simpatizou com ela.

Poucas semanas depois a família partiu para os Estados Unidos levando Taletha para a nova terra prometida, longe da violência desumana que, mais uma vez, havia dizimado o povo armênio, tão nobre e tão sofrido.

NOTA: Esse conto visa rememorar o Genocídio Armênio iniciado no final de abril de 1915 e que, em poucos meses, causou a morte de 1.500.000 homens, mulheres e crianças inocentes.