A PORTA ENTREABERTA

Publicado por: Dara Pinheiro
Data: 18/09/2020
Classificação de conteúdo: seguro

Créditos

Conto de suspense livremente inspirado na obra de H.P. Lovecraft. Narração e efeitos sonoros GutoRussel.
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A PORTA ENTREABERTA
 
O ritualdaquela noite tinha sido especialmente extenuante, ao contrário das luas anteriores. Estava quase terminando o ciclo das treze luas de Tiamat, quando seria finalmente aceita entre eles. Treze ritos; treze lugares diferentes; treze sacrifícios. A cada mês ela recebia as informações precisas pelo correio: coordenadas, cores de vestes, materiais necessários, o que comer e o que não comer na véspera. Era tudo muito complicado, mas Diana achava aquilo tudo excitante, a promessa de poder valia à pena.
 
Daquela vez o lugar era um galpão abandonado em uma cidade do interior. Então ela colocou as vestes vermelhas e começou a intrincada preparação do local: o círculo, os símbolos a cada ponto cardeal, as velas certas de cada cor: amarela a leste, vermelha ao sul, azul à leste, preta ao Norte. Aspergiu sal por todo contorno do círculo, acendeu o turíbulo e pôs-se a recitar à meia noite as palavras designadas, que ela tivera que decorar com tanta precisão:
 
“Ssalmani-ia ana pagri tapqida duppira
Ssalmani-ia ana pagri taxira duppira...”
 
Enquanto ela recitava aconteciam ao redor dela coisas que ela só podia sentir através de outros sentidos que não a visão, pois deveria ficar de olhos fechados. Um cheiro no ar, algo químico, como ozônio talvez... Uma eletricidade que lhe arrepiava todos os pelos do corpo, e um som baixo, algo que se sentia com os ossos mais do que com os ouvidos. E um gosto metálico estranho, seguido também de uma secura na boca. Isso tinha sido assim todas as vezes, mas agora havia algo a mais, algo como um sussurro. E uma sensação crescente no centro da testa, como quando um lápis está próximo de tocar-lhe a pele e você sente uma antecipação. Não aguentou, era mais forte que ela: abriu os olhos.
 
E nada viu. Só o reflexo das velas e o crepitar das chamas.
 
Desanimada, pôs-se a recitar as palavras de fechamento do rito, indo em cada direção e dispensando os guardiões das torres das direções, displicentemente. Já tinha feito tantas vezes, era automático:
 
Zi Dingir Anna Edin Na Zu!
Zi Dinger Kia Edin Na Zu!...”
 
Recolheu tudo, olhou em volta... Teve a impressão de estar esquecendo algo, mas não se lembrava o que exatamente. Cansada, resolveu ir e não pensar mais naquilo.
 
Na manhã seguinte acordou com uma enorme dor de cabeça e com os olhos doendo pelo excesso de luz. Procurou a cordinha da persiana com a mão e não encontrou: foi quando percebeu que não estava em casa, em seu quarto. Estava num prédio abandonado no centro da cidade, muito suja de terra e sangue. Desesperada procurou por ferimentos em si, mas não encontrou. Por sorte a chave do carro ainda estava no bolso, então ela resolveu sair dali o mais depressa possível.
 
O carro estava em condições quase tão imundas que ela: sujo por fora e por dentro de barro. Chegando em casa correu para o banho, queria sentir a água quente derreter sua sujeira física e moral. Ela sabia que algo muito errado tinha acontecido, e esperava apenas conseguir escapar.
 
Saindo do banho, se deparou com um envelope em cima da cama. Tremendo de frio e de medo, antes de pegar o envelope perguntou:
 
- Quem está aí?!
Nenhuma resposta...
- Eu já chamei a polícia, ouviu bem?! Eles estão a caminho!
Nada. Apenas o gato ronronando no sofá naquela manhã de domingo.
Resolveu abrir o envelope. Nele, apenas uma frase:
 
“Você esqueceu a porta entreaberta.”
 
Diana gelou, e correu até a porta da frente: estava trancada. Foi até a porta dos fundos: estava trancada também.
 
Então começou a pensar que porta era aquela. Seria a porta do galpão na noite anterior? O terror da dúvida era pior do que a possibilidade de ser pega, ela simplesmente PRECISAVA saber que porta era aquela. Então resolveu voltar ao velho galpão.
 
Chegando lá, a grande porta de madeira estava trancada, do mesmo jeito que deixara no dia anterior. Respirou aliviada, mas ainda assim algo a perturbava... Resolveu entrar. Olhou a cena em volta, tudo estava como deixara, ou seja: sem vestígios de ritual. Essa era a regra da Fraternidade. Exceto... Por uma coisa que deixara escapar: o círculo de sal. Droga, estivera tão cansada e frustrada que deixara de varrer. Foi quando ela percebeu uma coisa: o círculo estava mexido em certo ponto, o sal espalhado, como que soprado ou arrastado de dentro para fora. Não tinha sido ela, com certeza! Não havia pegadas naquele rastro desfeito de sal, nem riscado de vestes. “Terá sido um vento?”, pensou; mas se fosse um vento todo o círculo estaria mexido, não apena esse trecho...
 
Diana começou a repassar mentalmente cada passo do ritual:
- Limpar, banir, traçar, invocar os guardiões, dizer as palavras... Dispensar os guardiões, destraçar, banir...
 
Diana andava de um lado para o outro cada vez mais freneticamente, estalando cada dedo enquanto repassava cada passo. E foi começando a duvidar das próprias memórias pouco a pouco. Tivera esquecido algo? Mas a carta falava de uma porta entreaberta, a porta ela não tinha esquecido... Foi quando ela se lembrou de suas primeiras lições.
 
“O círculo mágico é um portal entre os mundos. Dele comungamos do conhecimento dos antigos...” e ela estalava os dedos e as juntas das mãos em nervosismo a cada palavra recitada.
 
“Um círculo mágico é um lugar fora do tempo e do espaço. Precisamos ter total domínio de sua abertura e de seu encerramento...”
 
“A mente do mago é o portal do poder. Somente o mago tem a capacidade de manipular a energia das esferas...” Foi então que ela percebeu, para seu completo horror, que a porta entreaberta... Era ela.
 
No sanatório jaz Diana, condenada por triplo assassinato, diante da janela de sua cela isolada. Ela sempre estala compulsivamente os dedos e repete sem parar palavras que nenhum médico ou paciente entende...
 
“Ssalmani-ia ina bi'sha duri tapxa-a duppira
Ssalmani-ia ana GISHBAR tapqida duppira...”
 
 
 

 
Dara Pinheiro
Enviado por Dara Pinheiro em 21/08/2020
Reeditado em 21/08/2020
Código do texto: T7042664
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