Saudades ao Amanhecer
Não havia clareado
Quando o galo com seu jeito imponente
Estufara o peito e cantara
Para que eu recordasse da minha infância...
O apito do trem
Meu nobre despertador
Era também o lustrador do meu olhar
Que viajava com os passageiros
E nos acenos provocados por mim
Recebiam de volta um adeus para o destino...
Um sol sem rumo talvez
Mas os olhares nas janelas
Mais pareciam atores nos televisores
E a saga do vai e vem de vidas...
O abacateiro recebendo o Bem-te-vi
Enquanto o pé de Jamelão
Aguardava os mais peraltas
Para a escalada
E no cantinho do quintal
A horta da mamãe
Esperando a água com o regador
Pois dali saía o verde
Para enfeitar a mesa.
Logo os Pardais em sinfonia
Faziam a algazarra
Reverenciando o amanhecer
E a mamãe assoprando o fogão à lenha
Lenha essa que ela buscava em meio às plantas do cerrado
Para curar certas enfermidades.
Ora os gravetos molhados pela chuva
Ora o fogo sapeca
Fazia a fumaça fogosa visitar a casa
E a chaminé a esbanjar felicidade
Como se tivesse espalhando névoa no ar...
Na chaleira a água para o café
Nos pratos? Aquele angu doce e o fubá suado.
Papai tomando o seu café da janela
E olhando o tempo, pois...
Pedreiro em certa fase da obra não trabalha com a chuva.
E eu ali esperando ver a cara do loiro sol
Para ir à escola que por entre rabiscos e desejos
Aprendia a ler as primeiras palavras
Para a alegria de papai e mamãe...
Lá fora
A prosa dos vizinhos
Desenhava o dia
E a vassoura assanhada
Ora varria
Ora dava uma pausa para o próximo causo...
E a vassoura na escuta...
Acordei com o umbigo coçando
E mais colado ao passado...
O padeiro e a buzina com o pão
No cesto da bicicleta de carga
O leiteiro em meio aos choros das crianças
Chegava para a alegria de todos...
À tarde
Nadar no poção
Ou brincar de bola-de-gude
Ou jogar futebol
Ou caçar passarinhos
Ou buscar frutos no cerrado...
Cajuzinho, Araçá, Jatobá, Pequi...
Cada fruto em sua época.
Sei lá...
Sapequice aflorada!
Foi-se o sol...e a lua prateada flutuando...
E já era noite
Quando a lamparina ostentava o pavio
E eu o mais velho dos oito
Ficava com a empreitada
De acendê-la e abastecê-la de Querosene
Lá da Venda do Zé Penteado
Que também nos vendia os mantimentos
Para o sustento da família.
E a dança das chamas
Iluminava a casebre
Ou mesmo sem a luz
Nossos olhos brilhavam no escuro
Ao ouvir as estórias de assombração
Que a mamãe contava para a gente dormir...
É manhã...
E lá a mamãe e o fogão
Cantarolando...
E papai novamente de pé
Pronto para o trabalho
Depois fazer a ronda rotineira
E visitar a cada a um dos filhos
Em suas camas em sono profundo
Antes de ir à labuta...
Cada um a sua maneira
Meus irmãos iam acordando
Conciliando o frio e a fome deixados pela noite...
Vão à beira do fogão
E ali
O bule já em cena
O Angu e o fubá suado
Protagonizando a peça
Para alegria de todos
Que também contavam os sonhos que cada um tivera na noite...
Pois eu me acordo é assim...
Nos braços do mundo
Da infância
Um labirinto misterioso e feliz
Um estradeiro e o rumo
Como um carro-de-boi com um som estridente
Feito um violino na ópera do sertão
Sou a poeira na beira da estrada
Uma porteira cantadeira
Uma águia altaneira
Um ser submerso de saudade
Saudade da minha infância!
Quem de sua infância
Saudades não tem?
Quem?
Tinga das Gerais