A cidade estava em chamas, mergulhada no caos. Os sons dos combates cada vez mais distantes revelavam que os focos de resistência local das tropas da Situação eram varridos pelos revolucionários da Oposição para cada vez mais longe dali, em velocidade avassaladora.
Na noite, sob as nuvens enrubescidas pela luz dos incontáveis incêndios que se projetavam do solo ferido de guerra, dois homens das forças de ocupação da Oposição ziguezagueavam pelo labirinto de escombros ruinosos, cumprindo a ordem superior de limpar a antiga catedral da cidade de qualquer armadilha ou inimigo escondido nela. Munidos de disposição e de seus fuzis automáticos, rumaram pelas ruas até o imponente prédio, pulando cadáveres ainda fumegantes da batalha e estilhaçando destroços sob suas pesadas botas militares.
Chegados em frente ao edifício, contemplaram aquela bela e ancestral arquitetura cinzenta, uma grande sombra projetada contra o céu. Avistando-a de baixo para cima, puderam sentir exalando dela a síntese do velho poder; poder este agora destronado pelos revolucionários do amanhã. Embora muito bombardeada e parcialmente destruída, a igreja continuava teimosamente de pé, assombrando os dois pequeninos soldados. Tomando rápida consciência de suas bocas abertas perante tal monumento, evitaram maiores delongas e empurraram, resolutos, as grossas portas de carvalho que pendiam ruidosamente das dobradiças de ferro.
O penumbroso interior da construção era fracamente iluminado pelos incêndios da cidade, que adentravam o ambiente através de suas janelas quebradas e crateras adquiridas pelos petardos que recebera em suas paredes e telhados durante o pesado combate. Temendo denunciar sua posição, os dois rebeldes não providenciaram nenhuma luz, limitando-se a utilizar suas treinadas visões noturnas e o instinto de caçadores.
O ar abafado tinha cheiro de madeira queimada e fuligem, com um leve odor de incenso ao fundo, resquício das recentes celebrações religiosas realizadas ali. A beleza do teto alto, das imagens e das paredes trabalhadas ainda podiam ser vistas mesmo sob as camadas de destruição, e ambos os companheiros de luta esquadrinhavam sorrateiramente cada centímetro do ambiente em busca de algo ou alguém que colocasse em risco sua operação.
Caminharam por todos os recantos, buscando manter a máxima discrição possível. O local estava gelado e silencioso, arrancando-lhes arrepios. Para diminuir o frio e o medo, apertavam forte seus fuzis, a única coisa ali em que depositavam sua fé. Após muito investigarem e nada encontrarem, desceram uma estreita escada de pedra, cujos degraus desgastados pelo tempo conduziam a uma cripta sob o solo. Como o subterrâneo era fechado e absolutamente escuro, não tiveram outra alternativa melhor a não ser a de improvisar tochas para iluminar o caminho.
A cripta era comprida e estreita como um corredor, ladeada por sarcófagos bem talhados e conservados de ambos os lados. Passando por entre a morada final dos muitos religiosos sepultados ali desde tempos imemoriais, chegaram ao final da sala, que continha uma porta vermelha de ferro, sólida e pesada.
Forçaram-na. Sem sucesso.
Tiveram, então, que detonar a fechadura com uma carga ligeira de explosivo. Após o breve estrondo que ecoou pelo ambiente, arremessando estilhaços por todo lado, a porta estava destrancada para acesso à última sala a ser vasculhada na catedral.
Iluminaram-na com suas tochas e adentraram, com os braços cobrindo os narizes e bocas da fumaça poeirenta precipitada no ar. Era uma sala pequena e sem janelas, quase totalmente vazia.
Quase.
Havia uma criança desacordada, deitada em um canto dali.
Rapidamente os dois homens acorreram à ela e viram que era uma menina muito nova, aparentando ter uns sete ou oito anos de idade. Pousando o ouvido perto de sua boca, constataram que ela respirava; estava dormindo.
- Corja de canalhas! Como puderam prender nesse lugar desumano uma criança, sem nem sequer ter uma cama longe do chão úmido e gelado! - Praguejou em voz alta um dos rebeldes, como se os antigos clérigos não mais residentes ali pudessem ouvi-lo.
- E olha o que lhe fizeram…! - Redarguiu sobressaltado o outro, projetando a tocha na direção de uma série de correntes e cintas sobrepostas, apertadas contra o corpo da criança, imobilizando totalmente os movimentos de seus braços. Ambos ficaram espantados com a quantidade e a resistência daqueles rudes aparatos contra o diminuto e frágil corpo infantil da garotinha.
- Como puderam fazer isso…?
- E por quê?!
Sem mais tempo a perder, recostaram suas tochas na parede e puseram-se a desatar as cadeias daquela pobre criança. Era magra e estava numa condição deplorável: imunda, maltrapilha e com os longos cabelos ensebados cobrindo seu doce rostinho, dormindo profundamente, enquanto os dois homens punham-se a retirar cada uma das cintas e cadeados dela.
Ambos foram estranhando que, além da quantidade absurda de cadeias, na medida em que as iam retirando, as que estavam por baixo pareciam ser cada vez mais antigas, a julgar pelo material e pelo estado. Algumas daquelas cintas e correntes aparentavam ter séculos de idade. Conforme iam penosamente libertando-a, a menininha parecia dar sinais de que despertava, mesmo com toda a delicadeza empregada pelos compadecidos combatentes.
Por fim, ao arrebentarem sem grandes dificuldades o último par de cordas, já bastante deterioradas, a pequenina acordou. Ambos os homens se afastaram, silenciosamente, observando-a pelo clarão das tochas, cuja luz bruxuleante denunciava que seu material combustível estava perto do fim.
Ela colocou-se sentada, mantendo os finos braços rentes ao corpo, como se amarrados ainda estivessem. De olhos fechados, esboçou um bocejo e levantou os braços, estacando, com aparente surpresa. Parecia ter finalmente se apercebido de que estava solta. Os homens, emocionados, sorriram de satisfação.
Quando ela abriu seus olhinhos para enxergar melhor o que se sucedia, seus libertadores empalideceram: os olhos da menina eram completamente negros. E seu sorrisinho macabro de dentes pontiagudos lhes arrancou o mais visceral dos gritos.
Antes que conseguissem esboçar reação de fuga, ela os alcançou num salto, dilacerando-os com o par de mãozinhas mais fortes que já sentiram tocar seus corpos, cuja perversidade nem sequer a guerra parecia possuir. E aquela linda menina também era sádica: abandonou os dois pobres homens agonizando lentamente sobre o chão gelado, entre a vida e a morte. Rindo-se loucamente, a demoniazinha ganhou o mundo, relegando-os ao fim iminente e terrível que os entronizaria como os mais novos e profanos hóspedes das solitárias catacumbas da catedral.