Conto: O Relógio

Publicado por: Larissa Prado
Data: 04/04/2017
Classificação de conteúdo: seguro

Créditos

Conto, "O Relógio" por Larissa Prado. Narração: Leandro Aguilar
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O relógio

Estou farto de todo esse sangue. Toda manhã que me levanto é o mesmo procedimento: limpar todo o sangue dos felinos que mancha o chão. Esfrego, esfrego e quando levanto a cabeça para o relógio ainda não deu o meio do dia. Ele está parado em 9:34, me esqueço disso, que ele parou por falta de pilha ou por algum defeito. Levanto os olhos para ele depois de 20 minutos, e a hora continua a mesma e meu esquecimento também. 

A noite chega, os felinos se amontoam pedindo comida ao meu redor. Não tenho paz sequer para assistir meus programas preferidos, eles sempre estão miando e roronando em volta, é um inferno. Jogo alguns pedaços da pizza gelada que devora, o suficiente para um alvoroço sem fim. Penso comigo mesmo que é bom comprar mais veneno e acabar com a praga que eles se tornaram. 

Cada manhã chega um grupo de gatos diferente: brancos, pardos, mestiços, malhados, negros, grandes e pequenos, uns com duas pernas e um olho, outros com os pelos faltando. É um aglomerado de gatos que não tem fim, algo está atraindo eles, por isso os enveneno todas as noites. Na manhã seguinte, encontro eles estirados com filetes de sangue saindo pelo nariz e pelo ânus. O vendedor me garantiu que o veneno seria eficiente, está sendo. 

Levanto às 9:34 todos os dias, o relógio permanece parado enquanto enfrento o problema com a infestação de gatos. A hora parada marcando a infinitude de um momento que dura para sempre. Estou farto de limpar o sangue do assoalho, levantar os olhos e notar que vivo preso em um loop temporal. Esqueço que o relógio está quebrado, são os gatos ... é o problema deles que faz minha cabeça funcionar como um relógio quebrado: fazendo as mesmas coisas todos os dias, repetidamente, como se houvessem ponteiros estagnados no centro do meu cérebro.

Eu me pergunto se estou vivo, a sensação é de morte ciclíca. Martha não me ligou mais, acho que faz 3 meses que não nos vemos. Ela era minha namorada em outro tempo, antes do relógio ter quebrado. Ela vinha todos os dias às 3 da manhã para jogarmos pôquer e beber cerveja barata. Combinávamos em nossas ruínas. Achávamos que nos casaríamos em maio. O relógio parado indica que nada disso poderá acontecer pelo simples fato que me esqueci das pilhas. 

Olho em volta e só vejo sangue e gatos. Por um momento, breve e claro, consigo ver uma mão no chão da cozinha, assim solta, desvinculada do braço, inerte e faltando os dedos que foram devorados pelos felinos. A familiridade daquela mão é tanta que por um momento chego a acreditar que é a minha. Olho para o relógio por força do hábito, 9:34. Eu lembro que Martha veio numa manhã, fazia frio e uma chuva ameaçava cair, discutimos, foi algo intenso como nunca antes, e depois disso...

Há um apagão na memória, a única coisa que consigo pensar é nesse relógio quebrado e em gatos famintos, infestando toda casa e o odor podre de comida estragada. São dias difíceis, mas sei que uma hora passarão (ou passariam se o relógio não permanecesse parado).
Larissa Prado
Enviado por Larissa Prado em 03/04/2017
Reeditado em 03/04/2017
Código do texto: T5960512
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