Tardes gostosas aquelas, quando os rapazes iam para o programa de auditório da Rádio Tamandaré, aos sábados. O programa Carrossel, de Walter Lins, era o preferido, pela variedade de apresentações, atores, cantores, e pelos prêmios distribuídos, a título de sorteio ou como brindes pelo acerto dessa ou daquela tarefa.
A Rádio Tamandaré era uma das emissoras associadas e utilizava o auditório da Rádio Clube de Pernambuco, na Avenida Cruz Cabugá, o conhecido Palácio do Rádio.
Ali se apresentavam Sivuca e seu acordeão, Jackson do Pandeiro, Jackson da Sanfona, Arlete Sales, Lúcio Mauro, César Brasil, José Santa Cruz, os maestros Clóvis Pereira e José Menezes, Aguinaldo Batista e muitos outros expoentes do rádio pernambucano. E havia também uma atração, comandada por Aldemar Paiva, que consistia em uma sabatina sobre algum tema previamente escolhido. Quem se saísse bem até a última pergunta seria o ganhador.
Sivuca, com seu solfejado a acompanhar o acordeão, dava a todos a impressão de que o instrumento era tocado com a boca, tão idênticos eram os sons emitidos por um e outro, levando-se em conta que ela era outro instrumento musical.
Arlete Sales, garota-propaganda recém-contratada, deleitava a todos com suas pernas à mostra em saia godê, quando chegava ao microfone para ler os reclames, com voz e olhos sensuais.
Lúcio Mauro, Aguinaldo Batista, José Santa Cruz e César Brasil, com seus números humorísticos, preenchiam mais de uma hora do programa.
Naquele sábado, em especial, o maestro José Menezes estava lançando o seu frevo-canção para o carnaval que se aproximava, cujo título era: “Me dá, me dá”.
O auditório, em uníssono, cantou com ele.
O Palácio do Rádio vinha abaixo, com a emoção do frevo-canção, mesmo só tendo recebido a letra na entrada. Mas a música era simples e gostosa, de fácil aprendizagem.
A atração esperada, com Aldemar Paiva, em substituição ao apresentador oficial, iria ter início. Naquele sábado, o tema escolhido foi “Ruas do Recife”. Seriam sorteados dois espectadores para dissertar sobre as ruas, obedecendo a ordem alfabética. Os dois foram: Saulo e Margarida.
Saulo, rapaz tímido, dentuço (cangulo, como o chamavam), mas muito estudioso e inteligente. Nascido no interior, no entanto já estava no Recife desde os 5 anos de idade. Portanto, era recifense “da gema”. À chamada da senha 45, levantou-se de sua cadeira e correu ao palco, antes que a timidez o impedisse de ali se apresentar.
Margarida, uma moça bela no seu verdor, vaidosa, com seu vestido rodado, era, também, muito inteligente e estudiosa, mas levava a vantagem de não apresentar timidez. Também correu ao ouvir o chamado da senha 179. Correu diferente. Não com medo, mas com alegria, por poder aparecer, mesmo em voz (a televisão ainda não era utilizada para todos os programas de auditório e o rádio ainda era muito ouvido) aos seus amigos que ficaram em casa.
Sorte dos dois, ambos estavam ali na esperança de serem chamados. E para isso estudaram a semana inteira.
O apresentador iniciou expondo as regras. Seria sorteado aquele que iniciaria a descrição. Na sua vez, teria que dizer o nome de um logradouro com a letra do alfabeto na seqüência correta. Ao fim da descrição do nome, haveria uma pergunta a respeito da rua ou do nome que a identificava. Havendo a resposta correta, a vez passaria para o outro participante, que procederia o mesmo com a letra seguinte.
E a sorteada para iniciar foi Margarida.
— Letra A — determinou Aldemar.
— Rua da Aurora — começou ela.
— Por que este nome?
— A Rua da Aurora fica na margem do Rio Capibaribe que é alcançada pelo sol ao amanhecer, na aurora.
— Muito Bem. Sua vez, Saulo.
— Rua da Bela Vista.
— Onde fica esta rua?
— Fica na subida do Alto José do Pinho. Em uma de suas extremidades ficava um relógio que os motorneiros acionavam toda vez que passavam com o bonde por ali, para registrar a viagem, e por isso ela é também conhecida como Beco do Relógio.
— Margarida...
— Avenida Caxangá. É a via urbana reta de maior extensão na América Latina.
— Opa... Mas avenida é com A — retrucou o apresentador.
Margarida mostrou inteligência e desembaraço.
— Mas estamos citando os nomes e não os tipos de logradouros. E avenida é um tipo de logradouro, assim como rua, travessa...
— Perfeito! — disse Aldemar. — Não escorregou na casca... Saulo?!
— Dezessete de agosto.
— Onde fica?
— Em Casa Forte.
— Certo.
— Estácio de Sá — Margarida continuou.
— Quem foi este personagem?
— Fundador da cidade do Rio de Janeiro.
— Muito bem. Sua vez, Saulo. Letra F.
— Praça Fleming. E antes que me pergunte, praça é um tipo de logradouro. Fleming foi o descobridor da penicilina — disse o rapaz, rindo, já dominando sua timidez.
— Rua Guimarães Peixoto, também conhecida como Beco da Facada. Serviria para F e para G.
— Rua da Harmonia.
— O que é harmonia?
— É um estado de identificação entre partes integrantes de um todo, ao ponto de não haver discordância ou desordem entre eles.
Ao aceno de aceitação, seguiu-se:
— Rua do Imperador.
— Que imperador?
— Dom Pedro II — complementou.
E assim foi alternando-se, sem parar, o jogo-sabatina.
— Praça Joaquim Nabuco. Foi um abolicionista pernambucano, nascido na cidade do Cabo.
— Lindolfo Collor, constituinte de 1937, também redator do Jornal do Commercio.
— Praça Maciel Pinheiro. Fica na confluência das ruas da Imperatriz, Rua da Matriz, Rua do Hospício, Rua da Conceição, Avenida Manuel Borba e Rua do Aragão. Ali morou a escritora Clarice Lispector. Sim: Praça também é tipo de logradouro — complementou Saulo, entrando no jogo de Margarida e deixando o jogo dinâmico e solto.
O apresentador faz uma pausa e chama a garota-propaganda.
— Arlete, querida Arlete, está fazendo um calor pra chuchu!
— Sim, Aldemar, e para este calor, nada melhor do que guaraná Fratelli Vita. Se o povo prefere guaraná Fratelli Vita, pra que contrariar o povo? Guaraná Frateli Vita, um produto genuinamente brasileiro.
— E agora, Margarida, uma rua com a letra N.
— Natividade Saldanha.
— Quem foi esta mulher?
— Não foi uma mulher. José da Natividade Saldanha era filho de um padre, o padre João José Saldanha Marinho. Foi um dos participantes da Confederação do Equador.
— Praça Operária. E não me venha perguntar o que é operária. É toda mulher trabalhadora. — saiu-se Saulo, antes que lhe viesse uma pergunta tipo casca-de-banana.
— Rua Principal.
— Opa!!! Que rua principal é essa? Eu quero é o nome dela!
— Rua Principal é o nome de uma pequena artéria, uma ladeira que liga a Avenida Norte à Rua Um, no Alto José do Pinho. Apesar do nome, é uma rua secundária, se não terciária, tão estreita e intransitável ela é.
— Beco do Quiabo. O beco é o tipo, e não o nome, como já explicou Margarida. E quiabo é aquela fruta gosmenta.
— Vocês estão dando as respostas antes que eu lhes pergunte, não é? Sabidinhos! — complementou Aldemar, já se cumpliciando com os debatedores, que àquele momento deixaram de ser concorrentes e começaram a se aliar, no jogo de empurra-empurra, para chegarem os dois ao final.
— Riachuelo. Nome de um riacho que foi palco de batalha na Guerra do Paraguai.
— Santos Dumont. Foi o inventor do avião. A rua com seu nome liga o bairro do Rosarinho ao das Graças.
Era a vez de Margarida citar uma rua com a letra T. Parou, pensativa. A memória estava falhando.
Aldemar, até então levando o jogo na brincadeira, apertou.
— Vamos, Margarida. Letra T.
— Espere um pouco...
— Esperar? Se parar, perde.
— Tabira — lembrou ela. Rua que liga a Avenida João de Barros à Rua Montevidéu.
— E quem foi Tabira?
— Sei não. Sei que é nome de uma cidade do sertão.
— Está bem. Aceito — tranqüilizou Aldemar. E continuou.
— Saulo?
— Ulisses Pernambucano.
— Quem foi ele?
— Um psiquiatra.
— Só?
— Quer mais? Psiquiatra não basta?
Rindo, o locutor deixou prosseguir. Não iria, àquela altura, atrapalhar mais os contendores, que já tinham mostrado muita inteligência, conhecimento e memória.
— Margarida?
— Rua Venezuela. Rua que fica próxima ao Parque Amorim. Nome de um país sulamericano.
Chegou a vez do X. Caíra para Saulo aquela letra. Que faria ele? Seria sua última resposta. Perderia no fim? Forçou a memória... Nenhum nome.
— Saulo? — chamou à ordem, impaciente, Aldemar Paiva. — Letra X.
E Saulo calado, já quase entregando os pontos.
Malandro, agora já mudando o jogo, o apresentador se achega e, como que querendo ajudar, sussurra:
— Xisto Gadelha.
E Saulo:
— Rua Xisto Gadelha.
— Quem é Xisto Gadelha?
Caiu-lhe a ficha! “Era uma armadilha”, pensou ele, ao ouvir “quem é” e não “quem foi”. E rápido, no desespero, a memória trabalhou.
— Que Xisto Gadelha? O nome é Xavantes. Rua Xavantes.
— Fale-me sobre Rua Xavantes — pediu agora Aldemar, já sem meias brincadeiras.
— Rua Xavantes é uma rua do bairro de Casa Amarela que liga a Avenida Norte à Rua Nereu Guerra. Xavantes é o nome dado aos índios da tribo do mesmo nome. Habitam a região central do Brasil e foram muito perseguidos pelos bandeirantes.
— Ufa! Por pouco, heim?! Letra Z, Margarida!
Pior ainda. Margarida, tendo presenciado todo o suplício de Saulo, sentiu também um branco na memória, ela que já quase não passara pela letra T. Por fim, quase desistindo...
— Zeferino Galvão.
— Quem foi Zeferino Galvão?
— Um jornalista que atuou no Diário de Pernambuco na década de 20.
— Absolutamente certos!!
E deu por encerrado o embate, dando aos dois ganhadores o brinde: um disco de Claudionor Germano cantando frevos de Capiba e um ingresso para o programa Carrossel no sábado seguinte.
Para cada um deles o prêmio maior foi participar do programa, ser ouvido por todos e mostrar seu conhecimento.
Novamente, a garota-propaganda:
— Meu amigo, para seu penteado perfeito, use pentes Jangada. Pentes Jangada são inquebráveis.
Aldemar continuou o programa, despedindo-se de Margarida e pedindo a Saulo para ficar mais um pouco. E, com um sorriso nos lábios, diz:
— Veja a nova atração. Você vai gostar de conhecer.
Intrigado, sem saber o que viria a seguir, ficou o rapaz ali, entre feliz pela vitória e ansioso por saber por que ficara, quando Margarida já havia descido do palco.
E anuncia Aldemar:
— E com vocês, a nova atração musical: o cantor Rua Xisto Gadelha!