Arrogância divina

Aquela senhora de óculos grosseiros e antiquados era muito devota de todas as santas — e tinha uma língua mais afiada do que as facas Ginsu.

Dona Joana acreditava profundamente que Deus havia lhe conferido uma missão muito particular desde que nasceu. Em uma terça-feira, a branquela grisalha estava na banca de jornais a papear com Seu Valdo, um negro gordo, já idoso, e de poucas palavras. Assim sendo, a carola quase monopolizava a conversa, egocentricamente autoempoderada pelo divino. Em certo momento, ela revelou sua missão dos céus:

— Sabe, Seu Valdo, acho que Deus me deu um dom e um dever sagrado. Devo falar tudo o que vem à minha mente, doa a quem doer!

O negro, dono da banca, ficava sentado quase o dia todo. Excepcionalmente levantou-se, respirou fundo, arrumou uns maços de cigarro próximos ao caixa e disse, em tom mais do que tranquilo:

— Hum. E ao mesmo tempo, todas as outras pessoas do mundo receberam, mesmo sem saber, a missão de ouvir tudo o que você tem a dizer. Seja lá o que for. Tá certo...

A idosa franziu a testa e saiu em disparada, murmurando maldições e impropérios nada gentis — nem santos.

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