Angela perdeu a paciência com o mundo em definitivo. Tiraram-lhe o marido e o filho num acidente de moto. Tiraram-lhe o trabalho porque uma outra pessoa fazia o mesmo, por um salário menor. Tiraram-lhe a casa porque não tinha como pagar o aluguel mais. Tiraram-lhe a privacidade quando teve que morar com seu irmão. Tiraram-lhe a dignidade quando a assaltaram e a humilharam. Tiraram-lhe tudo. E então, ela desistiu.

Encontrou o ponto mais alto do planeta em um site de mapas, e então decidiu que precisava ir ainda mais alto. Consultou Atlas, a Bíblia, escritos antigos, poemas, hieróglifos... e então descobriu o verdadeiro cume da Terra, muito além do que qualquer pássaro poderia voar, qualquer avião pudesse chegar, qualquer alpinista pudesse sonhar.

Angela foi até lá. Desprovida de tudo, já que não tinha nada, a não ser sua própria determinação e indgnação. Precisava falar com alguém, alguém não humano, não mortal, não tão indgnado quanto ela. Tinha que ter com Deus, Jesus, Alá, Buda, qualquer um... a conversa definitiva.

E então ela chegou. Mais de seiscentos dias depois, ela chegou. Com frio, com fome, com sede, cansada e machucada, sozinha e desolada, mas chegou. E pra sua surpresa, havia alguém lá. Um homem sentado sozinho ao pé de uma árvore petrificada, soltando vapores pelas narinas. De belos cabelos negros, rosto tranquilo e sereno, largos olhos vermelhos, ele sorriu.

- Não sei como chegou aqui, mas tua visita é inesperada. Nunca achei que uma mortal pudesse chegar até este ponto.

- Vim atrás de uma resposta definitiva de Deus. Preciso saber. Você é Deus?

- Mais ou menos, não exatamente. Eu sou filho dele. Mas não temos nos falado muito. Sou um Deus no meu reino. Aqui, somos apenas nós dois. Falemos de igual pra igual.

- Quem é você, afinal?

- Tenho muitos nomes. Lúcifer, Satã, Samael, Leviatã, Anticristo, Legião, Deicida, Cabrunco. Você escolhe.

- Mas eu vim aqui falar com qualquer um, menos você!

- Você veio questionar Deus. A partir do momento que você o questiona, então é comigo que tem que conversar. Deus é fé cega. Se você duvida, então você está ao meu lado. Mas a que devo a honra?

- Preciso falar com Deus. Com Jesus. Alguém. Não você.

- Bem, Angela, fale com quem você quiser aqui em cima. Se a árvore não te responder, e você não quiser falar comigo, acho que será um diálogo bem solitário.

- Tá bem, tá bem! Não quero ter vindo até aqui a toa. Vou reformular minhas perguntas, já que aposto que todas elas apontam para você como resposta. No fim, creio que está tudo certo.

- Vamos ver. Em que posso ser útil?

- Porque me foi tirado tudo? O que eu fiz pra merecer tamanha punição? Meu marido, filho, casa, vida! Porque me tiraram tudo que eu tinha? Se sempre fui boa, honesta, fiel, trabalhadora?

- Deus lhe diria, se estivesse aqui, que os caminhos dele são misteriosos. Mas ele não está aqui. O que eu posso dizer? Não é sobre merecimento, já que o mérito da humanidade é a morte, e apenas ela. As coisas acontecem, sabe?

- Foi você, não foi? Você quem me fez mal, quem me tirou a família, que quis me ver duvidar de Deus através de seus atos?

- Ah, por favor. Olhe em volta, Angela. Que bela paisagem! Daqui, posso ver todo o mundo. O seu, o meu, o Dele. Eu tenho mais no que pensar do que ficar indo de casa em casa criando esse tipo de coisa. Não, não tenho nada a ver com isso.

- Foi você quem, então, fez com que me ex-chefe decidisse pela libertinagem de uma mulher burra, porém bonita, que além de receber menos que eu, ainda lhe fazia favores sexuais? Isso é bem sua cara!

- Não fui em quem criou a mulher que tomou seu lugar. Foi Deus. E foi ele quem deu o livre-arbítrio para seu chefe tomar tal decisão. Também não tenho nada a ver com isso.

- E não foi você que, através deste ato, tirou minha morada, meu templo? Arrancou-me o lar, deixou-me interrogativa e duvidosa no frio?

- Deus não disse que teu templo é teu corpo? Por acaso eu tirei teu corpo de você? Não. Acho que você reclama demais, Angela. Sente-se aqui, contemple a paisagem um pouco antes de partir.

- Partir? Não saio daqui sem minhas respostas!

- E o que mais deseja saber?

- Não é você, Senhor das Trevas, quem cria inveja, guerras, dor, sofrimento, cobiça, ira, e todos os pecados a que somos diariamente submetidos?

- Você alguma vez já brigou com seu pai, Angela?

- Muitas vezes. Ele faleceu há alguns anos, e não nos falavamos mais desde que eu era adolescente. Porque?

- Eu também briguei com o meu, muitos milênios atrás, e nunca mais falei com ele. Nem ele, nem meu irmão, Jesus. Desde que eu apenas ofereci aos primogênitos humanos a fruta do saber. Achei que, dando a eles a visão periférica do mundo, seriam menos frustrados. Mas meu pai brigou comigo, me mandou embora de casa, e removeu também vocês humanos do jardim dele. Ele disse, então, que vocês tinham apenas 10 regrinhas simples pra seguir, e que todas elas baseavam-se em "ame ao próximo como a si mesmo". Mas vocês, deliciados pelo saber, quiseram desafiar as ordens divinas. A culpa disso tudo aí não é minha não, é de vocês.

- Mas foi você quem ofereceu a maçã!

- Não, foi Deus. Deus colocou a maçã lá e disse que ninguém podia mexer. Ora, você se lembra quando seu filho derrubou leite quente na própria face? Você disse "não toque no fogão", e ele foi lá e tocou. A culpa é dele? Não, é sua! Você quem tentou a criança. Teu marido não tem nada a ver com isso, tem?

- Não...

- Pois nem eu.

- Mas as pessoas se odeiam, se matam, guerreiam. Porque há tanto mal na Terra, se não por tua influência?

- Animais têm alma?

- Não sei!

- O que você acha?

- Acho que não...

- Sim, eles têm. A alma deles chama-se 'instinto'. Eles não matam porque são ruins, diabólicos, nem por serem influenciados por mim. Eles matam pra comer, pra defender território, pra manter lideranças. Ora, humano, o que é você senão um animal evoluído? Vocês matam por fome, sede, terras, honra, liderança. Apenas instinto. Eu não movo um músculo em relação à isso.

- Eu sempre fui boa. Sempre fiz tudo certo. Eu acho que merecia uma condição melhor. Um perdão!

- Eu te perdoo.

- Não quero o teu perdão! Quero o perdão de Deus!

- O que você fez de errado?

- Nada!

- Então, de que se desculpa?

- Eu....

- Então, eu te perdoõ por ter se enganado neste sentido.

- Você é o demônio! Você está me enganando!

- Foi você quem subiu até aqui.

- Porque você está aqui?

- Estou birrado.

- O que???

- Birrado. Meu pai brigou comigo. Eu fui embora e levei meus filhos todos comigo. Ele quer que eu me desculpe, mas não vou fazer isso. Então fico aqui, apenas observando.

- Não foi isso que perguntei! Quero saber porque você está aqui, no monte mais alto do mundo, além do toque dos pássaros e aviões, e não está lá em baixo, no inferno, onde é seu lugar?

- Meu lugar? Ora, não ouviu nada do que eu disse?

- Ouvi!

- Então ouça e também escute. Estou brigado com meu pai, mas quem constantemente o ofende são vocês. Quem O humilha, e ainda cobram providências são vocês. Vocês que cospem no nome Dele, riem Dele, criam filmes, livros e histórias ridicularizando Ele, invertem o sentido das coisas que Ele fala. O inferno não é lugar pra mim, eu estou apenas birrado. Quem vai pra lá são vocês.

- O que isso tem a ver com o que vim lhe perguntar?

- O que é que veio me perguntar?

- Porque Deus me tirou todas as coisas da vida?

- Os caminhos dele são misteriosos. Talvez ele quisesse que você viesse até aqui falar comigo, atrapalhar meu momento de meditação, para entender que a vida de vocês, são vocês quem fazem. Ele lhes deu regras fáceis de seguir. Sigam, e serão felizes.

- E eu?

- Você, Angela... amava teu marido, mas desejava teu instrutor da academia. Amava teu filho, mas achava que o da visinha era mais educadinho. Adorava sua casa, mas a casa da sua amiga Lúcia era maior e mais bonita. Você amava teu irmão, mas ele bem que poderia ser mais educado e gentil. Você era dedicada no trabalho, mas queria um aumento, mais sossego. Você sempre foi ciente de sua vida, de seu sofrimento, mas sempre quis ter a vida de outra pessoa. No fundo, bem no fundo, você desejou que tudo mudasse. Pois bem, tudo mudou. E o que você fez? Reclamou mais. Veio questionar Deus. Você cavou seu caminho, e botou a culpa em teu pai. Mais alguma perguntinha?

- Não senhor.

- Então, por favor, volte para tua vida, aceite-a como está, busque melhorar sem invejar. Aceite-se humana, siga as regras do Pai e tente sorrir de vez em quando.

- Você não é tão diabólico assim.

- Sou. Afinal, eu sou o Diabo. Mas não tenho nada contra Deus, meu pai. Só não tolero a arrogância de vocês, homens.

- Só mais uma coisa.

- Sim?

- Como faço pra descer daqui?