ALEPH NÃO QUER ME DAR O MUNDO

Não sei quantos é Daniel: no mínimo dois. Ao segundo, que identifico, darei o nome de Aleph, nome da primeira letra do alfabeto hebraico, também de um livro e de conto de Jorge Luis Borges, conto no qual o termo Aleph indica o ponto no espaço de onde se podem ver todos os demais pontos do Universo.

Quando vi Daniel pela primeira vez, olhei seu rosto de musgo e neve e não pensei em nenhum profeta bíblico nem no rosto talhado entre os rochedos, nos rochedos do conto de Hawthorne.

O rosto mudo, de pedra, do conto de Hawthorne. Mas este é o rosto de Aleph ou melhor, a boca muda de Aleph, perdida de algum verbo original.

Não, não é exatamente muda. Dela, um sopro primeiro, leve sopro que vai virando respiração e, dependendo do que lhe digo, o que se tornou respiração vai se alterando muito, quase se transformando num grito, mas não chega a formar uma sílaba, que uma sílaba seria o começo da palavra, e a palavra já é o mundo. Aleph não quer isso, só me ouve como se eu fosse o Demiurgo. Aleph me ouve como se de minha fala lhe pudesse vir o ser: o ser dele mesmo ou o ser de Daniel, Aleph está consciente desta hipótese? Aleph quer que o mundo lhe venha de mim.

Eu tento, tento, mas sei que o que quero é chegar a Daniel, desesperadamente chegar a Daniel, através de Aleph. Chegar a Daniel, que não consegue nunca sonhar plenamente com seu próprio rosto, assim como jamais consigo sonhar plenamente com o meu próprio, coisa que só comecei a compreender de verdade depois da vinda de Daniel.

Qualquer semelhança é e não é mera coincidência. Escrevo tal frase assim como a advertência em um livro ou em novela de TV, para suportar o desespero, esse que me dá vontade de sair gritando pelas ruas ou de gritar a Daniel, pelo telefone, o seu verdadeiro nome, o nome que consta em sua certidão de nascimento, o mesmo pelo qual as pessoas o conhecem. O pavor de ter enlouquecido sozinha ou de ser a presa de uma outra Vontade, em um jogo inimaginavelmente cruel, obriga-me a um quase sobrenatural esforço, a fim de alcançar um mínimo de sensatez, e aí corro para Rubem, para enlouquecer do modo diametralmente oposto, sempre carregando e mantendo a certeza de que o meu pesadelo é maior do que os deles dois, somados. Rubem não sabe de Daniel-Aleph nem Daniel sabe o verdadeiro nome de Rubem e, de mim, cada qual colhe a metade que conhece e que sabe administrar.

O homem chamado Daniel não corre o risco de ser identificado, a não ser pelos seus porta-vozes, esses que ele utiliza para saber se estou aqui, em minha casa, com minha mãe, nos sábados à noite. É verdade que jamais descarto completamente a possibilidade de o mundo ter se tornado uma alucinação auditiva, embora tal hipótese seja algo indescritível, à Poe. Ligo todas as minhas possíveis e impossíveis antenas para tentar apreender a verdade e creio que suportaria qualquer uma, qualquer, tendo no entanto, que me resignar em cada segundo, na eternidade de cada dia, a este suplício inimaginado pelos deuses, até que o homem Daniel se transmute no Anjo da minha vida.