UM LOBO EM TRÊS TEMPOS

Era uma vez um lobo bem no centro de uma floresta distante, um lobo sonhador cujo passatempo favorito era tocar violino. Quando seus longos braços enlaçavam o instrumento, vinham-lhe imagens múltiplas, dentre as quais avultava a de uma garota de chapeuzinho vermelho: primeiro acorde, em Sol Maior. As notas então prosseguiam, traçando arabescos através do bosque, perseguindo o chapeuzinho e as borboletas até a casinha nos confins da linha do horizonte. Diante da janela, podia-se ver a silhueta de uma velhinha sossegada, à espera, alheia ao rumor dos caçadores à procura de suas presas.

Era um lobo sonhador, que gostava de uivar enquanto tocava. Seu uivo era o contraponto necessário à placidez da música, bem na hora do pôr-do-sol. Seu uivo era a dor de alguém sendo devorado pelo próprio sonho, um sonho muito antigo no centro de uma floresta distante.

O vitral se estilhaça desnudando lá fora, a paisagem de neve.Ele corre, tenta fugir, a paisagem o persegue. Os pés gelados, o violino perdido, os fragmentos das figuras no vitral.

Senta-se calmamente na mesma poltrona de ontem, de sempre. Os livros nas estantes. O cachimbo. A figura antiga no retrato, a figura da dama antiga, com seu pitoresco chapéu vermelho. Fecha os olhos, evocando. Todas as outras imagens estão perdidas. Olha o gato persa a dormir sobre o tapete.

A mulher chega à janela. A noite que se aprofunda vai espalhando, ao longo das avenidas, a dor infinita do uivo que lhe sai da garganta.