Zequinha e a prancheta usada

Zequinha e a prancheta doada
 

Idos de 1978, mais ou menos, Zequinha estudava no SENAI, CFP4, à rua Moraes e Silva no bairro de São Cristóvão, próximo à Tijuca, no Rio de Janeiro.

 

Ele caminhava por uma linda rua na Tijuca. Rua Arborizada com casas de dois pavimentos dos dois lados. Algumas construções eram de estilo antigo. Outras modernas. Todas elas muito bonitas. A Tijuca era um bairro de classe média do Rio de Janeiro, capital. Nesses lugares moravam pessoas chiques. Jovens com rostos bondosos, pele bem cuidada, cabelos sedosos e roupas de marca. Essa experiência sempre impressionou Zequinha. A vestimenta que eles, os jovens, desleixadamente usavam pareciam nunca os deixarem desarrumados. As meninas vestiam shortinhos curtos, desfiados, camisetas temáticas... Os meninos usavam calções caros, camisetas também temáticas e tênis surrados. Os homens mais velhos quase sempre vestiam camisetas tipo polo, com listras horizontais. Esses detalhes chamavam a atenção de Zequinha. As senhoras de idade mais avançada apareciam com os cabelos pintados, sobrancelhas bem cuidadas, cílios postiços e muita maquiagem. Carregavam aquelas bengalas com cabos de madrepérolas. Pessoas elegantes. Nunca encaravam o pobre menino, Zequinha. Desviavam o olhar. Talvez por medo ou por sentirem alguma culpa por serem abastadas, enquanto ele um paupérrimo, pensava o pobre menino.

 

Todos estavam sentados em um cômodo do segundo andar. Era como se fosse uma sala espaçosa com alguns quadros largados na parede bem pintada. O ambiente produzia um eco muito propício para tocar instrumento musical. Um rapaz sorridente estava dedilhando um violão brilhoso cheio de decalques. A menina, princesinha, de costas para todos, teclava alguma coisa no telefone sem fio. Dava para ouvir o ruído das grandes unhas vermelhas e pontudas arranhando as teclas do aparelho. Ela sussurrava uma canção meio inaudível, que parecia ser a melodia da harmonia que o rapaz tentava levar no violão. Zequinha estava lá sentado em uma banqueta, morrendo de vergonha por ser o pobre, o paupérrimo, junto daquela gente "rica", como ele imaginava.

 

Logo a campainha, que parecia uma sirene, tocou. Logo em seguida mais quatro jovens subiram para juntarem-se ao grupo. À medida em que entravam alguns cumprimentavam Zequinha. Outros, nem o notaram. O rapaz do violão logo apresentou Zequinha aos demais dizendo que ele era músico e tocava saxofone além de outros instrumentos. Zequinha encolhia-se o que podia tentando desaparecer no assoalho. A sua voz sumiu e ele sentiu-se um bobalhão inexpressivo. Cumprimentou a todos com um sorriso meio angelical e a voz quase inaudível, submissa, trêmula, além de gesticular de forma desencontrada. 

 

Um dos rapazes logo apontou para o violão e pediu-lhe para tocar alguma coisa. Zequinha sorria tentando parecer simpático, mas era um sorriso amarelado pela vergonha. O violão logo veio parar em suas mãos. Ele não sabia o que fazer naquele momento. De repente, todo o repertório esvaiu-se. Não lembrava, sequer, de uma música completa. Não queria tocar os louvores da igreja, achava que não cairia bem ali. Dedilhava alguma coisa, ora um blues incompleto, ora umas escalas pentatônicas simples e fraquinhas. Imediatamente todos perceberam que ele não era interessante, e voltaram a atenção uns para os outros focando no ensaio que se iniciava.

 

A menina dirigiu-se a Zequinha e gentilmente pediu-lhe o violão. Entregou logo o instrumento sentido-se aliviado. O grupo, então, formou uma roda com as suas cadeiras e todos começaram a cantar e a tocar. Muito bonito. Meio desafinado, mas bonito. Cantavam uma canção em inglês, que Zequinha não entendia e não conhecia. Todos deviam falar muito bem inglês, pois eram filhos de famílias abastadas. Certamente desde cedo aprenderam outros idiomas, pensava ele. Zequinha estava ali estasiado, deslumbrado, meio afastado da roda, e completamente invisível. Logo, a menina, colega do SENAI, dirigiu-se a ele dizendo que a prancheta já estava arrumada, e ele podia levá-la. A menina era muito simpática. Estava doando para ele uma prancheta de desenho usada, que não servia mais para ela. Prometera-lhe esse presente na sala de aula do curso de desenho de arquitetura, que os dois frequentavam no SENAI.

 

Zequinha acenou meio envergonhado despedindo-se do grupo de meninos. Alguns balançaram a cabeça sem, contudo, interromperem a música. Outros nem o olharam. Cambaleante e desajeitado Zequinha desceu a escada com a prancheta nos ombros e a colega tentando ampará-la para não arranhar a parede bem pintada. A prancheta era bem maior do que ele previra. Estava difícil para ele conseguir carregar aquilo para o subúrbio. Embarcar no trem na estação de São Cristóvão e descer em Anchieta, subúrbio da zona norte do Rio, quase baixada fluminense, enfim. Pensou em desistir do presente, mas ficou envergonhado de parecer mal educado.

 

Zequinha seguiu andando pelas ruas chiques e lindas daquele bairro arborizado carregando aquela coisa enorme, ora na cabeça, ora nos ombros, reposicionando frequentemente a prancheta para não perder a visão do caminho. Vez outra ele parava para descansar, respirar e aliviar a carga. Caminhava por aquelas ruas bem calçadas com casas bem construídas. As pessoas que por ele passavam possivelmente julgavam-no um serviçal carregando algum resto de coisa velha do patrão. Não o olhavam, muito menos o ajudavam. Enfim, chegou à estação de trem de São Cristóvão. Atravessou pela roleta com dificuldade ajudado gentilmente pelo guarda da estação. Enfim, embarcou no vagão vazio com aquela geringonça verde.

 

No interior do trem sentiu-se melhor. Logo ajeitou-se encostado na parede que separava o vagão um do outro. As pessoas que ali dividiam com ele o espaço pareciam bem familiares aos seus olhos. Feições enfeiadas, rostos com espinhas e brotoejas empoladas. Elas usavam roupas simples, falavam alto e, quase sempre, mastigavam alguma coisa comprada dos vendedores ambulantes do próprio trem. A imagem dos meninos "ricos" não saía de sua mente. Que mundo diferente do meu! Pensava ele. Que menina linda. Uma princesa! suspirava meio hipnotizado. Já naquela ocasião Zequinha tinha a mania de escrever as suas experiências. Não fazia isso de forma disciplinada. Escrevia em qualquer lugar, geralmente nas últimas folhas de seus cadernos da escola. Escreveu uma poesia tosca para a menina princesa, mas jamais a enviou. Perdeu a poesia com o tempo.

 

Na estação de Anchieta desceu carregando aquele, agora, incômodo presente. Subiu uma rua íngreme pavimentada de paralelepípedos, que ficava logo em frente à saída auxiliar da estação. Caminhou com aquele peso na cabeça e, finalmente, chegou à casa, cansado, mas feliz. Esta prancheta esteve por lá em sua casa por muito tempo. Finalmente, transformou-se em um lixo qualquer. Hoje já não deve mais existir.

 

Gideon Marinho Gonçalves.