EM FAMÍLIA - Capítulo 1 - A feijoada

Publicado por: Claudio Parreira
Data: 03/05/2008

Créditos

Texto: EM FAMÍLIA - Capítulo 1 - A feijoada - Claudio Parreira Voz: Claudio Parreira Trilha sonora: http://www.newgrounds.com/audio

EM FAMÍLIA

I – A FEIJOADA

Os tradicionalistas preferem às quartas e aos sábados, mas para nós domingo é o dia da feijoada.

À mesa estão papai, vovô, vovó, o tio e a tia e eu. Quando mamãe traz o jarro de caipirinha, a emoção ferve em nossas veias: servimo-nos de um copo cada um e esperamos pelo discurso de vovô, que é o mais velho da família. Ele se levanta com a ajuda da bengala e dispara meia dúzia de palavras em sua língua materna, incompreensível para nós. Acabado o discurso, a tia aproveita a ocasião e nos obriga a rezar. Vovô, que é anarquista, permanece de costas.

Após essas cerimônias introdutórias, aguardamos apenas pelo apito de papai, que nos autoriza a começar o massacre efetivamente. Quando o silvo do apito soa em nossos ouvidos, a família e as relações familiares se dissolvem em nome do barbarismo: avançamos sobre o caldeirão como verdadeiros animais, laranjas voam por toda a extensão da mesa, a couve picadinha se transforma em serpentina, os rabos e os pés-de-porco pulam e se mexem como se ainda estivessem vivos. Em menos de dez minutos a mesa já é um território devastado, mas o almoço só termina de fato quando o último dos arrotos sonoros perde a intensidade. Depois disso nos retiramos, graves e solenes como se não nos conhecêssemos, cada um escondendo do outro o mal-estar e os frascos de sal de fruta.

II – A VOLTA DO FUGITIVO

Acontece que mamãe adquiriu o péssimo hábito de assaltar a geladeira durante a noite. De nada adiantam os cadeados e correntes colocados à porta: ela os abre num piscar de olhos.

Isso nos deixa preocupados. Imaginamos a aflição de mamãe, os maus momentos que deve passar por causa do vício. Ela, no entanto, não dá provas de estar incomodada. Pelo contrário, passeia pela casa com um sorriso nos lábios, parece mesmo uma menina.

Papai, que é o mais próximo por razões óbvias, é quem mais se preocupa: em sua cama, além de correntes e cadeados de todos os tipos, fotos e mais fotos do Grande Houdini, mágico com o qual nunca simpatizou e muito menos agora.

III – CIRCOS

A chegada do circo na cidade é o motivo da nossa maior alegria. Somos os primeiros a assistir ao espetáculo de estréia, e depois, em casa, nos preparamos: papai engole espadas e cospe fogo; o tio desengaveta as roupas de palhaço; mamãe e a tia evoluem no trapézio improvisado no quintal e eu faço os números de magia e contorcionismo. Vovô, que de nós é o mais talentoso, imita os animais. Vovó treina para nos apresentar.

Quando estamos bem ensaiados, montamos a nossa modesta lona bem em frente ao circo. Como não dispomos de um sistema de alto-falantes e nem de dinheiro para cartazes, nossa brilhante estratégia para atrair o público consiste unicamente em franquear a entrada. O gerente do circo vizinho fica uma fera por causa disso e vem tirar satisfações com papai. Em geral eles discutem, e papai, quando ameaçado, lança mão do seu maior trunfo: vovô, escondido atrás de uns caixotes que servem de arquibancada, imita tão perfeitamente um leão que o gerente se apavora, pede desculpas e desaparece.

Na noite que marcamos para a estréia, o público assiste a dois espetáculos: o nosso, que escorrega um pouco por conta do amadorismo, e o do circo em frente, que exibe graça e técnica até mesmo para recolher a lona.

IV – ANARQUIA SOBRE A ÁRVORE

– VARMUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUCHTEN!!!, grita vovô, nu, sobre a árvore do quintal. Eu e mamãe somos pegos de surpresa, vovó se lamenta, o tio corre, preocupado, a tia cobre os ouvidos com as mãos.

– Precisamos tomar uma providência, diz o tio, indo para dentro.

– Uma providência, repito.

Do alto da árvore, com seus olhos de pássaro desplumado, vovô nos observa. Nada em sua expressão denuncia insegurança: parece ter passado a vida inteira entre galhos e folhas, a cinco metros do chão.

O tio volta do interior da casa mais tranqüilo. Solicitou ajuda pelo telefone.

– Vai demorar?, pergunto.

– Já estão chegando, responde o tio, apontando para o portão.

Um filólogo, um tradutor, um especialista em línguas mortas, uma mocinha recém-saída da infância. Vovó os recebe com abraços e biscoitos, e eu repito a palavra pronunciada por vovô. O filólogo balança a cabeça, o tradutor consulta a sua biblioteca portátil, o especialista não se manifesta e a mocinha sorri para vovô, que lhe devolve uma piscadela libidinosa.

– Precisamos consultar o próprio emissor, diz o filólogo. Só ele tem a chave adequada para decodificar a mensagem.

– O que ele quer dizer é que só o velhinho pode nos ajudar, diz o tradutor.

O tio e eu trocamos um olhar. Sabemos que uma colaboração de vovô é praticamente impossível. Mamãe, um exemplo de bom senso, leva vovó e a tia para dentro. Os homens se reúnem embaixo da árvore.

– Senhor, berra o filólogo, repita a palavra, por favor. Precisamos analisar a sua cor, textura, a sua sonoridade.

Vovô, dando os primeiros sinais de irritação, vira-se de costas para os homens e peida, cagando em seguida sobre suas cabeças.

– Meeeeeeeeerdaaaaaaaaa!!!!!!, grita o especialista, em língua bem viva.

Sem demonstrar a menor preocupação para com o ato ou suas conseqüências, vovô desce dois galhos e ajuda a mocinha a subir na árvore. Com ela no colo, ouve a voz de papai, que até então não se manifestara:

– Estão perdendo tempo, todos vocês. Esqueceram que ele é anarquista?

V – NO ZOOLÓGICO

Uma vez por ano vamos todos ao zoológico. Para marcar a nossa chegada, fazemos tudo o que uma família alegre e saudável faz: comemos quilos de cachorros-quentes, chupamos dezenas de picolés de limão e tomamos litros e litros de refrigerantes com gás. Além disso, para a alegria dos fotógrafos ambulantes, tiramos muitos retratos para o nosso álbum, coletiva e individualmente.

Cumprida essa etapa inicial, passamos ao que interessa: os animais. Mamãe e papai se metem no escritório para ver o administrador. Vovô e vovó preferem o doce inferno marrom dos banheiros e lá se enfiam à cata de usuários incomuns. O tio e a tia, generosos, se ocupam em distribuir amendoim e pipoca às crianças e seus respectivos pais. Eu, que sou o mais jovem, gasto o meu tempo pelas alamedas, os olhos grudados em qualquer coisa que tenha tetas e bundas cobertas por minúsculos shorts.

Quando o fim da tarde se anuncia, o estacionamento é nosso ponto de encontro. A expressão de felicidade no rosto de cada um confirma o sucesso do passeio. Dói apenas deixar o zoológico, abandonar os animais à própria sorte. Isso nos corta o coração.

VI – LICANTROPIA

Vovó é dada a desaparecer em noites de lua cheia. Aonde vai, ninguém sabe. O que faz, muito menos. A única certeza é que ela volta sempre ao raiar do dia, as roupas escangalhadas, envolta num silêncio de pedra.

Os comentários sobre o assunto são os mais variados possíveis. Uns acham que vovó, depois de velha, acabou por se viciar em drogas. Outros apostam que ela voltou à vida boêmia. Eu, por minha vez, acredito mesmo é na licantropia. Não é segredo para ninguém que vovó sempre foi chegada num lobo-mau.

VII – AGENTE CMBC

Não é sempre, mas vez ou outra a Comissão da Moral e dos Bons Costumes planta um vizinho aqui em casa para nos espionar. Nós fazemos os rapapés de praxe e o convidamos para sentar. O bucéfalo se julga o próprio James Bond e disfarça os seus reais objetivos inventando uma desculpa rala para justificar a sua visita. Nós, que já estamos carecas de saber do que se trata, vestimos a fantasia que nos cabe e encaramos o homem. Ele dá voltas e mais voltas, desconversa, mas entre um assunto idiota e outro mais ainda ele vai jogando o seu anzol. Durante horas respondemos às suas perguntas com bom senso e educação, servimos chá à inglesa e condenamos com veemência a conduta de certas famílias que ele exibe como exemplos a não serem seguidos. Terminada essa fase, o homem nos testa ainda com outras diversas armadilhas (bem primitivas, diga-se de passagem), esgota o seu repertório de provocações sutis – que não revidamos em hipótese alguma –, e, num misto de alegria e frustração, desliga o pequeno gravador guardado no paletó. Encerrada por fim a visita, nós o conduzimos cercado de gentilezas até a porta da rua, de onde ele parte levando para seus superiores a imagem de uma família recatada e inofensiva. Só de pensar nestes termos nos enchemos de pavor, mas é isso que garante a paz por uns tempos.

VIII – PENÉLOPE

As pessoas normais montam quebra-cabeças, colecionam selos, apostam na Bolsa de Valores. Mas o que dizer de um homem que se julga capaz de construir uma caravela em tamanho natural no sótão da própria casa?

Esse é o novo passatempo do tio. Se fosse vovô o autor da façanha, poderíamos ainda lhe dar um desconto. Mas o responsável é o tio, e quando ele mete uma coisa na cabeça...

Tudo começou com os livros de História. Ávido pesquisador dos descobrimentos, pouco a pouco ele foi se rendendo aos encantos das caravelas, aquelas naves enlouquecidas. Isso foi o bastante para contaminar a casa com datas e lições fora de hora, palestras e especulações sem propósito. Em longas discussões com papai, antigo apreciador da Odisséia, o tio expunha sempre o seu delirante e preconceituoso ponto de vista:

– Você não pode reescrever a Odisséia porque lhe falta o talento de Homero. Mas eu sou talentoso o suficiente para reconstruir uma caravela.

Papai, talvez ofendido, duvidou da afirmação. É por isso que temos agora um tio construindo uma caravela no sótão.

Sob os olhares estarrecidos da família e da vizinhança, o tio ocupa os seus dias entre mapas e projetos, planos de navegação e reproduções. Sua tão propalada caravela, porém, só cresce em pleno dia. Um ser misterioso desfaz todo o trabalho durante e noite, e papai, cínico dos melhores, diz que ele pode muito bem se chamar Penélope.

IX – BRIGA DE GALOS

Antes mesmo que os galinhos comecem a briga, mamãe dá a primeira bordoada no apostador à sua frente. Papai, aproveitando o susto dos galistas, massacra três ou quatro. Vovô não suja as mãos, mas a sua bengala espalha o pânico entre os apostadores. Os galinhos, perplexos, não se enfrentam, não se movem. Em compensação, eu e a tia botamos sete pra correr. Vovó trabalha à moda antiga: alisa primeiro e depois bate. O tio apenas contabiliza as baixas e providencia as ambulâncias.

Muito embora pareça, o nosso comportamento nas brigas de galo nada tem de cruel. Pelo contrário, ele é uma prestação de serviços à comunidade, uma tentativa de coibir o vício das apostas. E isso pode ser confirmado de maneira bem simples, por qualquer um: ninguém, absolutamente ninguém sai perdendo com as nossas intervenções. Os galinhos conservam as suas penas e o dinheiro não sai do bolso dos galistas. Mesmo assim, eles não entendem. São uns mal-agradecidos. E ainda querem nos afastar das rinhas...

X – A OVELHA BRANCA

De todos aqui em casa, a tia é quem tem o comportamento mais estranho. Sua conduta ao longo dos anos tem provado isso: ela é considerada por todo o bairro como pessoa equilibrada, coloca a virtude e a honestidade acima de tudo e além do mais é o exemplo das beatas da rua, que a querem à frente das coisas da Igreja. A tia, com sua inacreditável modéstia, recusa sempre o convite, se diz não merecedora de tal privilégio e encerra o assunto servindo chá para as beatas na sala, o que provoca em vovô uma escala de reações que vai do mais simples desdém até o que há de mais moderno e obsceno em matéria de palavrões.

Mas, para nossa infelicidade, isso que está acima não é tudo. Os problemas com a tia não acabam por aí. Os médicos, tolos contumazes, mostram apenas um diagnóstico: ela é normal. Nós voltamos para casa arrasados, e mamãe, que é sua irmã, intercede sempre em seu favor. Esse protecionismo exagerado dá nos nervos do tio, que com palavrões e insultos exibe a marca inequívoca da sua filiação. Papai já é mais refinado, e citando Rita Lee, de quem é fã incondicional, aponta para o fato de que em qualquer família há sempre uma ovelha negra. Ovelha negra o catsu!, digo eu. Ovelhas negras somos nós, negríssimas, por sinal. Nem nisso a tia se iguala: é pálida, leitosa, transparente quase. Mas isso não é motivo para discriminar a pobrezinha, diz vovó, esta sim tão da família que nunca joga limpo, nunca mostra a sua verdadeira identidade.

Quando saborosas discussões desse tipo de abrigam no peito da família, a tia, ao invés de nos deixar brigando e em paz, vem com os famosos panos quentes, as frases apaziguadoras, os malditos chás calmantes. É um verdadeiro milagre que ela se conserve ainda sobre as pernas e com todos os dentes.

XI – CAMA DE PREG0S

A tristeza alheia é uma coisa que não suportamos. Basta apenas que uma pessoa nos apresente o mais leve indício de que está triste para que nos mobilizemos. Explico: vovó, papai, enfim, cada um de nós inventa uma história pessoal – carregando nas tintas do sofrimento, é claro. As histórias em geral são tão fortes e pungentes que aquele que está triste é forçado a sentir vergonha dos seus problemas, tão insignificantes se comparados aos nossos. Por conta disso o sujeito se sacode. Com o astral lá em cima e todo contente, o tristonho recuperado abandona a cama de pregos da sua infelicidade e mete a cara na vida. Vai para a rua sorridente, uma canção florida pendurada nos lábios. Acontece, porém (e sempre há um porém), que a força de nossas histórias é tão avassaladora que o tiro sai pela culatra. Cada um de nós absorve a história inventada como se ela fosse real, e aí não tem mais jeito: vítimas do próprio remédio, disputamos a tapa a cama deixada pelo outro, transbordantes de tristeza, chorosos, infinitamente inconsoláveis.

XII – PREFIROSWALDEANDRADE

– Quem foi o animal que andou roendo o meu Ulysses?, berra papai, espumando pelo canto da boca.

Um grave silêncio invade a sala. O tio sai de fininho em direção ao sótão. A tia faz o pelo sinal da cruz e se manda para a cozinha. Mamãe esconde dois cadeados no bolso do avental e se tranca no quarto. Vovó se retira com a desculpa de que precisa dormir. A noite foi plena de emoções, diz ela. Eu, escriba de plantão, faço que saio mas não saio, fico escondido atrás de uma coluna, a caneta pronta para registrar o confronto:

– Sobrou apenas o senhor, diz papai.

Vovô palita a dentadura; não responde.

– O senhor sabe o que significa Ulysses para mim? Não, não sabe. Sempre do contra, não é? Essa sua terrível personalidade prima muito mais pela falta de educação do que pela ideologia.

Vovô se delicia com os elogios. Papai continua:

– Pois saiba que Ulysses é a obra máxima da literatura, divisora de águas das letras modernas. Só mesmo alguém vil e desprezível como o senhor seria capaz de roer as páginas de um livro sagrado.

Vovô, sem negar ou afirmar a própria culpa, dispara outra de suas palavras-enigma:

– Prefiroswaldeandrade.

Claudio Parreira
Enviado por Claudio Parreira em 18/04/2008
Reeditado em 18/04/2008
Código do texto: T950958