MARIANNA

Publicado por: Claudio Parreira
Data: 20/04/2008

Créditos

Texto: MARIANNA - Claudio Parreira Voz: Claudio Parreira Trilha Sonora: Renaissance - Prologue Edição de Som: Claudio Parreira Software de edição: Audacity

CRÔNICAS POSSÍVEIS - 5 microcontos

1

Tudo acontece ao contrário em Marianna: os galos cantam ao cair da noite, os carros avançam de marcha-à-ré e sempre chove pra cima. Quando chove.

Apesar disso, a vida em Marianna é considerada normal por todo mundo. Os relojoeiros atrasam os relógios com naturalidade e as cenouras crescem todas com suas raízes voltadas para o sol, que no verão surge sempre à meia-noite.

Quando nascem, os velhos não dão trabalho algum: sabem todos que em breve chegarão à idade adulta, e que depois disso uma adolescência repleta de surpresas e delícias lhes está reservada. Este, aliás, é o maior orgulho da cidade: o fim da velhice só traz alegrias em Marianna.

O único problema da cidade são os descontentes. Sim, há descontentes em Marianna, aos milhares. Eles reclamam de tudo, não concordam com nada e acham que a vida de verdade está lá fora, além dos muros que cercam a cidade. Por conta disso, a cada ano, muitos partem. E não se dão conta do óbvio: partir de Marianna, por causa da própria natureza da cidade, significa voltar a ela.

2

Sempre gostei de carneiros. Minha infância foi repleta deles: carneiros brancos, pretos, verdes; carneiros altos, sorridentes, inquietos, carneiros quadrados. À mesa também estiveram muitos carneiros, que mamãe preparava com um exagero de vinho e pimenta e hortelã.

Hoje, no entanto, não vejo mais carneiros por aí. Uma tristeza. As pessoas, aliás, nem sabem o que é isso. Algumas consideram já ter visto algo parecido na TV; outras, em fotos amareladas. As crianças que eu conheço acham que os carneiros são apenas seres imaginários criados pela internet.

Foi por causa disso que resolvi fotografar carneiros. Trazê-los de volta à luz, resgatá-los do esquecimento. Provar ao mundo que eles ainda existem.

Tenho 7 câmeras que registram tudo o que passa na rua, 24 horas por dia, todos os dias. Meu esforço, no entanto, tem resultado inútil: acumulo já há meses fotos e mais fotos de caminhões, dinossauros, tigres de bengala e fusquinhas, hidras, minotauros, senhores de chapéu coco, medusas, anjos e demônios, a putaquiuspariu. Carneiros, nenhum.

3

A caixa é pequena: menos de um metro quadrado. Mas tem me sustentado há mais de 20 anos.

Eu faço assim: chego na cidade, alugo um teatro modesto e espalho cartazes com uma fotografia colorida da caixa pelos postes. Em vermelho, uma frase bem simples: "O que será que tem dentro da caixa?".

É o suficiente para lotar o teatro. A cada uma das 100, 200 pessoas eu falo: "Não é fantástico? Nunca vi coisa tão genial dentro de uma caixinha!".

Com medo de serem consideradas insensíveis a tão refinada manifestação artística, as pessoas todas concordam. Algumas até acrescentam: "É mesmo! O conteúdo da caixa é impressionante!".

Impressionante são as pessoas, eu diria. Mas isso não vem ao caso agora.

4

No mês passado fui vítima de dois assaltos – mas tudo correu bem: eu saí vivo e o ladrão, satisfeito. Percebi isso nos seus olhos.

Na semana passada, um assalto apenas. Mas foi genial: fui seqüestrado e passeamos muito pela cidade, eu e o ladrão. Descobri, aliás, ser ele um apreciador da filosofia de Kant. Um homem raro – e foi com raro prazer que lhe entreguei todo o meu dinheiro.

- É o suficiente para as suas investigações filosóficas? – perguntei.

- Tá de bom tamanho, doutor – respondeu ele, que se foi levando o meu carro.

Ontem, no entanto, as coisas não correram nada bem: fui pego de surpresa, com pouquíssimo dinheiro, e o ladrão, percebi, ficou decepcionado.

- Faltas desse tipo são intoleráveis – ele protestou.

A mim só restou baixar os olhos e concordar, resignado.

5

Um dia ele criou um sol em seu quarto. E era tão perfeito e vibrante o sol que ele se sentiu animado a criar outras coisas. Veio daí uma lua, que era igualmente perfeita e redonda. Criou também um carro novo, porque era necessário. E depois disso tudo, para alegrar um pouco o ambiente, criou uma flor, uma solitária flor dentro de um vaso.

Tempos depois, cansado do confinamento, o sol criado se apagou. A lua, sentindo-se só, também se foi. O carro se convenceu que o mundo era grande demais, e resolveu rodar, rodar e rodar. Restaram só ele e a flor, criador e criatura.

Mas o homem, como é natural, um dia também resolveu partir. A flor, sozinha, não teve outra alternativa: criou novamente um homem para ser por ele criada, mais uma vez.

Claudio Parreira
Enviado por Claudio Parreira em 17/04/2008
Código do texto: T949340