A FACA E AS CONTAS (BVIW)


O que cercava aquela casa não eram muros, sim trincheiras. Valêncio vivia em pé de guerra por tudo e por nada. Bastava alguma folha da mangueira, do vizinho, cair em seu quintal para dar início às provocações. Valêncio tinha uma peixeira aborrecida pronta para entrar no couro duro de quem aporrinhasse as suas ideias, já muito estressadas pelos anos de serviços burocráticos.

- Inferno! É hoje que Salomé vai entrar em ação! Vou preso, mas mato essa desgraça de vizinho!

Valêncio havia batizado a peixeira em alusão à personagem bíblica, que pediu de presente a cabeça do profeta. Não havia um dia que o estressado desse trégua aos ataques. Espraguejava as pipas dos meninos na rua quando agarravam em alguma árvore da casa. Reclamava da música da moradora do sobrado em frente. Muito encrenqueiro! Eram saraivadas de palavrões e de insultos. Vergonha para a família, diversão para a molecada. Neusinha, sua mulher, gastava as contas do Rosário quando as brigas ficavam mais incandescentes. Dava para jurar que se via Nossa Senhora ao lado dela rezando junto, tanto era o sufoco que a infeliz passava com as desavenças. Na mansidão com a qual se revestia, Neusinha implorava ao marido para guardar tanto o ácido da língua quanto a faca assassina de ferro. Para não dizer que nunca houve dias calmos, duas vezes ao ano Valêncio ia com a mulher para sua cidade natal. Era quando a rua respirava tranquilidade. Certa vez enquanto retornava para casa ouviu do vizinho Alisteu dizer para o filho:

- Quando a gente pensa que os problemas acabaram, vem o diabo e aperta o restart! Olha o enjoado voltando de férias...

Bastou essa faísca de indireta para atiçar fogaréu mais ainda na raiva do Valêncio. A discussão prometia durar noite afora. E lá ia Neusinha recorrer ao Terço de braços dados com a Virgem Maria!