O Velho do Açude

Publicado por: Dara Pinheiro
Data: 01/09/2020
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Créditos

Trabalho de narração de Guto Russel sobre o conto de minha autoria participante do CLTS12. Este conto de folk horror é livremente baseado na lenda folclórica Corpo Seco e Bradador. Dizem que quando uma pessoa que é totalmente desprezível em vida morre a terra se recusa a aceitar seu corpo e os portões do céu e do inferno se recusam a aceitar sua alma. Assim sendo, seu corpo sem alma vaga pelo mundo, e sua alma sem corpo grita de desespero ao redor.
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O VELHO DO AÇUDE – CLTS 12

Aqui no sertão a terra é seca como os corações dos homens. Quando chove cada gota de chuva some no chão sem nem dar tempo de fazer lama, deixando só um leve cheiro de chuva no ar, exceto nos poucos meses em que chove o suficiente para que a gente descubra que aquela vala seca era um leito de rio. A vegetação se veste de verde, na esperança de poder durar, mas logo se entristece novamente e volta a enviuvar às avessas, coberta por um branco pardacento. É tudo poeira no sertão, e até a pele da gente é meio parda boa parte do ano, seca e curtida, dura e rachada como o leito morto do rio.

Não costumava ser assim. Diz minha mãe que na época de criança dela o rio dava até pra nadar boa parte do tempo, e as mulheres faziam sua jornada diária até a beira do rio, de manhã bem cedo pra lavar roupa, pra depois voltar carregando água pra beber em casa. É por isso que ela guardava num baú lá em casa aquele vestido bem branquinho, que eu nunca tinha visto igual. De tanta poeira no mundo ninguém mais usava roupa branca, era tudo meio encardido. Exceto o velho do açude: ele sempre usava linho branco.

Conta-se que o velho do açude ganhou na loteria lá na capital e veio pra cá fazer a vida. Na época ele veio com a esposa, uma senhora muito séria e calada que sempre usava vestidos modestos e um xale bordado à mão. Comprou umas terras na descida da Serra da Costela pra criar boi e começou a construir o açude pro gado ter o que beber. Ele derrubou toda a mata parca daquela região pra fazer o açude e começou a empregar os homens da região nas obras, e depois pra cuidar do gado e do curtume que ele instalou.

E então o rio da região foi ficando cada vez mais mirrado, só uma lama pra juntar mosquito no inverno. E as mulheres já não podiam mais lavar a roupa todo dia, porque tinham que andar mais pra chegar lá no açude. Aquela água era pardacenta e mal cheirosa, era o que sobrava do gado do Velho, mas era o que tinham, tanto para lavar roupa quanto para beber.

Não demorou muito e o velho se cansou da velha esposa: um dia ela foi mandada pra um sanatório, dizia-se que a velha tinha melancolia e estava ficando louca. Mas para todos nós da cidade aquela senhora nunca pareceu ser mais do que uma velha mulher que ia à missa todos os domingos e que era devota de Santa Rita, participando de todas as novenas. A velha se foi, e poucos meses depois o velho apareceu com uma moça mais nova, da pele corada e com sardas na bochecha, que dizia que era sua hóspede. Quando finalmente veio a notícia da morte da velha, em uma semana já estava anunciado o noivado e marcado o casamento com a moça. Ela tinha uns olhos azuis como da cor do mar daquela vez que fui lá na capital. Era uma moça muito bonita de se ver, e era também muito boa para todos na vila.

Com o tempo o velho se irritou com aquele povo todo na entrada da sua fazenda. Colocou jagunços pra organizar a fila e pra selecionar: só podia chegar perto do açude quem trabalhasse pro Velho. Uma vez um rapaz chegou cheio de atitude, dizendo que a mãe tava doente e precisava de água, e que ia pegar de qualquer jeito: dois tiros de espingarda no peito, foi tudo o que o moço levou. Tiveram dois enterros naquela semana, e o povo passou a entender que com o Velho do Açude não se devia brincar.

“Não vou facilitar pra vagabundo nenhum!”, dizia o velho. “A terra é minha, eu conquistei com o MEU trabalho! Ninguém nunca me deu nada, eu conquistei! EU!!! SÓ BEBE DA MINHA ÁGUA QUEM EU DEIXAR!!!”

Conta-se que o Velho costumava todo dia cavalgar perto da fila do açude. Se uma moça em particular lhe agradasse ele chamava pra casa grande... Se ela negasse tinha que sair da fila, só voltasse no dia seguinte. Os pais e mães das meninas não deixavam mais elas irem à fila do açude, e aquele lugar foi virando dia após dia uma procissão de velhas encurvadas para fazer o trabalho mais penoso de toda a lida diária. Algumas moças, porém, não tinham escolha: quando a mãe já não podia mais carregar água, tinham que ir se sujeitar à fila do açude, torcendo que seus trapos amplos as protegessem do Velho.

Um dia a jovem esposa dos olhos cor de mar engravidou, e foi uma grande felicidade na casa. Porém certa vez em que o Velho não estava nos bons dias, se irritou com a reclamação da moça: de que ele devia deixar as pessoas beberem livremente do açude, que não lhes faria falta, já que era a sobra do gado. O velho então a empurrou, querendo passar apressado, e ela caiu, batendo a barriga em uma quina de mesa. Teve febre de vários dias, mas o velho não quis ir chamar o doutor na cidade vizinha. Então ela morreu, deixando todos na casa arrasados. Pelo menos com a presença dela eles eram bem tratados, e ela sempre mandava fazer comida a mais para que sobrasse bastante para que levassem pra casa. O Velho, porém, não lhe deu nem uma semana de luto; já voltara a rondar a fila do açude. Enquanto andava por lá discursava:

“O trabalho duro é o que separa os homens dos porcos! Nós recebemos de Nosso Deus uma terra inteira para governar, mas foi uma terra pronta? Não!!! Deu uma terra bruta, pra que a gente tivesse o que fazer. Pra que a gente construísse nossa riqueza com nosso suor! E quem de vocês tiver a capacidade de trabalhar duro como eu trabalhei, poderá chegar onde eu cheguei! Mas vocês trabalham? Não... ficam aqui mendigando todo dia, querendo tomar aquilo que é MEU! Mas não se preocupem, eu não tenho raiva de vocês, eu vou, com meu próprio esforço, gerar trabalho para todos vocês. Porque eu sou bom, e misericordioso, como nosso bom Deus...”

Até que, como tudo o que existe abaixo dos céus, o Velho morreu... Não deixou nada pra ninguém, seu único herdeiro jazia no ventre da mãe, no cemitério do vilarejo ao lado da igrejinha. Teve uma missa especial pra ele, a Igreja estava lotada, mas ninguém chorou. Na hora do velório o caixão era de mogno com alças de bronze, havia a maior coroa de flores que a cidade já vira, mas não havia ninguém na capela. Seu enterro foi em silêncio, nem as carpideiras vieram para lhe prantear.
E passaram-se vários dias até que algumas pessoas começaram a relatar. Tinha algo de estranho acontecendo. Perto da meia noite os cachorros da vizinhança começavam a se agitar, latir e uivar, os magros jegues de montaria se agitavam, querendo fugir. Um vento seco soprava da Serra, levantando uma nuvem de poeira e folhas secas, como se viesse uma tempestade que nunca vinha. Lá pela lua cheia aconteceu a primeira vez: junto com o vento vinha um grito, um grito de lamento, longo e terrível. Todas as pessoas se fecharam em casa, rezando ave-marias sem fim. O grito parecia querer dizer algo... Mas os uivos dos cachorros não deixavam nada passar. Assim foi na primeira noite da Lua Cheia.

Na segunda noite da Lua Cheia as pessoas já tinham se organizado em uma novena na capela. O padre dizia que era besteira, mas aceitou abrir as portas da igreja pra iniciativa popular. À meia noite o vento voltou a soprar, primeiro manso, depois mais forte, batendo as janelas mal fechadas. As novenas e cânticos das pessoas na Igreja pareciam querer abafar o vento e os uivos dos cães, até que em determinado momento todos se assustaram com o forte barulho de cascos: todos os animais de montaria que não estavam bem amarrados conseguiram se soltar, e partiram em estouro para a estrada que saía da cidade. No dia seguinte, os animais que não conseguiram se soltar agonizavam com patas quebradas e a pele cortada onde as amarras os prendiam. Muitos precisaram ser sacrificados. Alguns donos com pena de seus animais decidiram: essa noite dormiriam soltos.

Na terceira noite de lua cheia a comunidade não quis se reunir na igreja: ficou cada um na sua casa, encolhido. Alguns poucos, os mais fieis, insistiram no poder da oração e foram. À meia noite o vento fantasma veio novamente, os pegando desprevenidos, absortos em meio a uma Salve-Rainha. Foi então que a ventania entrou porta adentro, abrindo janelas, apagando velas e sacudindo lustres, trazendo folhas, poeira e um grito desesperado junto consigo. No instante em que as janelas se abriram eles viram claramente no cemitério ali do lado um homem de pé. Ele usava um chapéu de panamá e um terno de linho brancos. Suas feições brancas de extremo horror e espanto estavam congeladas num grito sem palavras, e a terra seca, fina e avermelhada daquele sertão escorria aos montes de sua boca aberta. Foi então que aquela boca horrenda se articulou, ainda escorrendo terra, que eles conseguiram enfim entender o que o grito no vento queria dizer:

- ÁGUA!!! ÁGUA!!!

A cidade hoje em dia jaz abandonada. Todo mundo que podia ir embora, foi. O gado morreu, o açude secou. E toda lua cheia o corpo do velho vaga, seco e sedento, e seu espírito grita lamentos no sinistro vento da madrugada.

[TEMA: SOBERBA]