CARANGUEJOLA - MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO


 
 
Mário de Sá-Carneiro, o homem da foto,  grande poeta companheiro de geração de Fernando Pessoa, foi um ser terrivelmente atormentado, autor de poesia extraordinária que reflete, em cada sílaba, os sofrimentos e mortais paradoxos do existir. Hoje gravei e postei no Áudio do Recanto um de seus poemas, o "Caranguejola", poema de enorme auto ironia, que bem pouco disfarça a profunda amargura e desalento existencial que o inspirou.  Tentei, na minha leitura, passar um pouco dessa auto ironia do poeta. Espero tê-lo conseguido. Quem tiver interesse em ouvir tal leitura irá encontrá-la no Áudio do Recanto onde, aliás, tenho muitíssima coisa gravada... poemas... textos em prosa... música... tudo à capela. Eis "Caranguejola" de Mário de Sá-Carneiro.
 



Caranguejola - Mário de Sá-Carneiro




Ah, que me metam entre cobertores,
E não me façam mais nada!…
Que a porta do meu quarto fique para sempre fechada,
Que não se abra mesmo para ti se lá fores!

Lã vermelha, leito fofo. Tudo bem calafetado…
Nenhum livro, nenhum livro à cabeceira…
Façam apenas com que eu tenha sempre a meu lado
Bolos de ovos e uma garrafa de Madeira.

Não, não estou para mais; não quero mesmo brinquedos.
Pra quê? Até se mos dessem não saberia brincar…
Que querem fazer de mim com estes enleios e medos?
Não fui feito pra festas. larguem-me! Deixem-me sossegar!…

Noite sempre plo meu quarto. As cortinas corridas,
E eu aninhado a dormir, bem quentinho – que amor!…
Sim: ficar sempre na cama, nunca mexer, criar bolor -
Plo menos era o sossego completo… História! era a melhor das vidas…

Se me doem os pés e não sei andar direito,
Pra que hei-de teimar em ir para as salas, de Lord?
- Vamos, que a minha vida por uma vez se acorde
Com o meu corpo, e se resigne a não ter jeito…

De que me vale sair, se me constipo logo?
E quem posso eu esperar, com a minha delicadeza?…
Deixa-te de ilusões, Mário! Bom édredon, bom fogo -
E não penses no resto. É já bastante, com franqueza…

Desistamos. A nenhuma parte a minha ânsia me levará.
Pra que hei-de então andar aos tombos, numa inútil correria?
Tenham dó de mim. Co’a breca! levem-me prà enfermaria! -
Isto é, pra um quarto particular que o meu Pai pagará.

Justo. Um quarto de hospital, higiénico, todo branco, moderno e tranquilo;
Em Paris, é preferível, por causa da legenda…
De aqui a vinte anos a minha literatura talvez se entenda;
E depois, estar maluquinho em Paris fica bem, tem certo estilo…

Quanto a ti, meu amor, podes vir às quintas-feiras,
Se quiseres ser gentil, perguntar como eu estou.
Agora no meu quarto é que tu não entras, mesmo com as melhores maneiras…
Nada a fazer, minha rica. o menino dorme. Tudo o mais acabou.