Demoradamente, olho o pentagrama vazio. Trêmulas mãos, sobre as teclas. Na mente, a música ecoa, completa. Toco algumas teclas. Primeiros acordes. A melodia soa estranha. Coloco algumas notas no pentagrama, executo-as em seguida. Não, não correspondem ao prelúdio. Internamente, é outra a sequência ouvida. Cuidadosamente, repito a execução. Em vão. Aturdido, amasso o papel, lanço-o ao chão. Sobre o piano, o busto de Chopin* me fixa...
Insisto. Nova sequência e troca de notas temporiza-a-dor. Porém soa-me diferente, incompatível. Aumento a concentração. Outras e mais outras alternativas. Decepção. Pentagramas jogados ao chão...
Domina-me patética incapacidade de realizar insistente composição noturna. Dedos deslizam sobre o teclado, acelero e retardo ritmo, intempestivamente. A harmonia se esvai, desconexa. Olho as notas, claves, sustenidos e bemóis amassados, espalhados ao redor....
Mãos sobre as pernas. Na cabeça baixa, a intraduzível melodia. Retomo. Dedos, alucinados, percorrem o teclado de uma a outra extremidade. No ar, flutuam abstratas notas. Esforço vão. Abandono o piano. A melodia, intacta, ecoando no pensamento. Faz-se tarde, muito tarde...
Recolho-me ao quarto, exausto. Deito-me. Olhar fixo no teto, acústica perfeita. Súbito, compreendo. Estás comigo, profundamente dentro em mim. A música, como tu, me habitam. Lenta, envolve-me doce paz. Estando tu em mim, e também a música, tu ouvirias. Sim, é uma melodia para ti, e isto está acontecendo. Aconchego-nos. Sei que adormecerás serenamente ao som da composição, suave, executada pelo coração. Pianíssimo. Tudo aquieta-se... Sinto isto profundamente... Vou desfalecendo, sonho desnecessário. Estamos aqui os três: tu, eu e o Noturno de Pleno Amor. Somos um...
Sobre o piano, um pentagrama de invisíveis notas...
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N.A. Frederic A. Chopin (1810-1849), exímio compositor e virtuoso pianista, nascido na Polônia. Celebrado como um dos maiores compositores da época do Romantismo. A maioria de suas obras são solos para piano, como os prelúdios, sonatas e noturnos, de cunho intimista, e eternizados com suas belíssimas nuances musicais.
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Profundamente emocionado, agradeço a interação poética desta mestra das palavras, ZULEIKA DOS REIS, e suas também admiráveis múltiplas nuances:
Teu pentagrama vazio
Teu Noturno
tocaram-me tão fundo
que me calaram as palavras
a mim, que não sei criar músicas.
E o fui lendo
a esse derramamento
de dor e de notas soltas
lamento de múltiplos mundos
e navios presos a amarras.
Amigo meu, eu quis um canto
para acompanhar-te
o instrumento que não sei
o dueto que a voz rouca
não consegue cantar.
Aí pensei:
Antes um canto parco
que canto nenhum
por isso amigo meu
venho trazer-te
este meu pouco verso
para agradecer-te
pela amizade
que dura há tanto...
há tanto...
há mundos...
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Pelas trilhas poéticas, veio DAVID S WAISMAN, com versos escritos em pentagramas, envolvido liricamente e executando, derramando um belíssimo e inspirado soneto. Obrigado!
Encontro Noturno
Solitárias lágrimas cantadas
Pelos rosários do coração
Que um espinho de perdição
Deixou sem notas amadas
Nas faces desconhecidas
Não havia misericórdia
Para resolver a discórdia
Das claves desaparecidas
Dos céus surge harmonia
Anjo-irmão da melodia
Adeus, tempo soturno
Nasce estrela do amor
Escritor e compositor
Nos braços de Noturno
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Não deixem de ouvir a magnífica recitação na voz suave da eclética, sensível e brilhante poetisa ARIADNE CAVALCANTE, numa dolente, interpretação. Basta clicar no link abaixo. gajocosta