CAFÉ FRESCO
Ando aéreo nesse tempo de pés no chão
de concreto à volta, acima e embaixo.
Deixo as pernas à vontade
para que caminhem soltas
sem a necessidade de.
Penso tolices, que alcancei a idade
em que o tempo não me atinge
com suas maldades.
Passo ileso pelas lâminas da ostentação
pelo gume da aparência
pela traição das crenças.
Passo a passo vou passando
debaixo de escadas, gatos pretos
sem nenhuma assustação.
Ando muito aéreo nesses dias
mas não perco o senso nem atençao
que os motoristas não perdoam poesia.
Vou assim andando leve,
sem compromisso, sem medo
vendo as desgraças que acordam cedo
sem nenhuma abismação.
Agora, que nada me pega despreparado
quando sequer preciso mais das convenções
para entender o que é certo e errado,
posso ir desfrutando de cada passo
que as pernas atiram para frente
enquanto os olhos olham encantados.
Tudo é majestoso e abundante:
os edifí¬cios, as casas, a miséria
a solidão, os parques, as pessoas
Tudo feito por arquitetos de renome
com suas medições gigantescas
para abrigar enormes elefantes.
Enquanto passo pelas grandezas
vou calculando minhas miudezas
cavoucando nos bolsos trocados
para tomar um café meio amargo
Esse perfume que se desprende
do pó cozido após torrado
me retorna a um tempo
em que eu andava assim,
leve, liberto, largado.
Esse mesmo perfume, quando olho à volta
para perceber os gigantismos aqui e ali
me revela no ouvido o que já sei:
onde nasci não tinha as mentiras daqui,
os ódios daqui. Lá, repetirei, havia Deus
que de vez em quando me sorri
me deixando leve, assim.