Forças Ocultas e o Amor Propriamente Dito
1
Aos dezoito anos, Ludovico era de estatura mediana. Pele amorenada, não tinha encantos físicos. Ajudava o pai numa loja de 1,99. Atendia muitas pessoas. Enamorara-se de uma delas. Com idade beirando à sua, a preferida não o notava. Comprava, pagava e ia embora. Seu cheiro e graça ficavam por momentos a pairar no ar que o rapaz respirava. Era chamado à atenção pelo pai, quando absorto não reparava a freguesa a tentar pagar um produto adquirido. Por sua mente vagavam idéias de como se fazer perceber. Engendrava situações para falar com aquela musa. Era tímido. Não tinha experiência de abordar u'a mulher. Descobriu onde ela morava e seu telefone. Ligava e permanecia mudo. Somente para ouvi-la dizer: Quem é? Fala! Estou ocupada... Tenho que estudar... Vou desligar, hein!...
Ludovico não tinha coragem de declarar-se. Ela era tão especial! Gostava do timbre de sua voz maviosa. Pensava em convidá-la para irem ao cinema, darem um passeio no shopping... Apreciaria flores, bombons? Concordaria que lhe pegasse a mão? Como se portaria ao lado dele? O coração do pobre moço pulsava forte na perspectiva de concretizar tais pensamentos...
Num dia de sol, seguiu-a até a praia. Por sorte, estava de folga na loja paterna. Viu-a sair de casa, acompanhada de um cachorro da raça dobermann. À distância observou-a entrar na areia. Corria, brincava com a docilidade de uma princesa. O animal, obediente, correspondia aos seus movimentos. Ludovico, então, resolveu abordá-la. Porém, nada deu certo. Ela assustou-se! Não o reconheceu da loja. Pensou ser um ladrão. E não pestanejou em ordenar ao cão: ataque! O jovem, paralisado, não entendia o porquê seu amor reagia daquele jeito. Deixou-se morder, rasgar pelo feroz bicho, ao olhar impiedoso da amada. Caído ao chão, ouviu-a falar: Pára Bob, vais matar esse vagabundo... Vamos embora, ele aprendeu a lição... Deixa esse coitado aí...
E Ludovico ficou ali, derribado, com vontade de chorar. Não pelas dores das dentadas recebidas, do sangue a jorrar, mas pela crueza daquele amor...
2
Para Ludovico, o amigo Anco Júnior era um traidor. Como pudera abandoná-lo? Sempre falava que a amizade entre os dois era primordial. Nem uma fêmea podia desuni-los. As "gostosas" eram apenas para aqueles momentos de sacanagem. Porque amizade é um amor sem sexo. Acreditara naquele desgraçado! Anco foi se distanciando paulatinamente. Provocara até uma discussão idiota para se afastar. Não precisava daquele puto, afirmou Ludovico nervoso. E lhe disse mais na cara, no auge da falação:"não preciso de ti, vai pro inferno, vai tomá no cu! Sei viver sozinho!" A resposta, bem que podia ter sido o silêncio. Mas, não! Anco rebateu: "não estamos sozinhos, Deus está sempre presente". Olhou-o com ódio profundo. Ele nunca falara daquele jeito. A tal namorada devia ter-lhe incutido teorias cristãs na mente. Transformara o ferrenho ateu em mais um fantoche. Anco gostava de repetir: "a vida é uma festa pagã cheia de tesão". Dessa forma saiam abraçados para as aventuras e perigos da noite. Escapavam por vielas, rindo das estripulias praticadas. Amparavam-se, quando tomados de bebedeira. Viviam amorais. Eles usufruíam até do corpo da mesma prostituta. Tocavam-se sem o maior pejo. Entre eles só havia lugar para a amizade profícua. Depois da desavença, que os separou por semanas, Anco reapareceu. Sorriu da frieza de Ludovico como se tudo estivesse bem. Viera buscar uns livros emprestados. Aproveitou também para aconselhar: "deves arranjar uma 'gata' como eu fiz. Não somos mais adolescentes, estamos virando homens". Ludovico ficou calado. Teve vontade de esmurrá-lo quando ele lhe pôs a mão no ombro. Estremeceu de uma sensação inexplicável. Teve vontade de chorar. Teve vontade de falar que sucumbia de tristeza. Teve vontade de dizer que se sentia despedaçado. Naquela noite sonhou que seguia Anco num barco de papel. Via-o num convés de navio abraçado à escolhida. Embevecido por ela, não o percebia afundando, acenando-lhe o último adeus. Acordou sufocado. Necessitava reagir. Estava se conhecendo através das agruras por que passava. Nunca precisara explicar o porquê dos atos de ambos. Estavam sempre juntos! Mais uma vez sonhou. Andava por estrada de terra erma, empoeirada. Vento quente anunciava breve tempestade. Trajava um sobretudo destoante com o calor que fazia. Voz aguda de mulher cantarolava como se zombasse dele: "Ludovico está amando"...
3
Ludovico continuava sentado num banco de madeira na estação ferroviária. O que estava fazendo ali? A quem esperava? Ia pegar o próximo trem? Não sabia... Não tinha comprado passagem. A pequena mala a que se agarrava não guardava roupas. Apenas presumíveis relíquias ou folha de papel em branco. Que coisa sem sentido! A plataforma ainda estava movimentada com gente, embarcando e desembarcando, às pressas. Precisava tomar uma decisão. Seu trem ainda demorava ou nunca viria? Adolescente, fugira de casa, do domínio de um padrasto alcoólatra e avaro. Tornou-se morador de rua. Não atinava há quantos meses. Conheceu nesse escape um velho. Ajudou-o a carregar pequena mala para um hotel da cidade, na promessa de receber uns trocados. Não protestou pelo peso da estranha bagagem. Seu dono, além de ancião, usava elaborada bengala que o ajudava a caminhar. De chapéu, vestia impecável terno de linho. Falava o tempo todo. Vinha pela vida carregando aquela mala encantada. Nos últimos tempos, não conseguia mais levá-la satisfatoriamente. Precisava parar, tomar fôlego e descansar. Estava sempre em movimento, de mudança. Ficava, portanto, poucos dias na mesma localidade. Quando mais novo e cheio de energia amou alguém. Essa irresistível paixão mudou toda a sua existência. Fê-lo cativo na beleza e imaturidade da juventude, envolto de raro perfume. O homem só deseja aquilo que conhece? Não tinha certeza.... Ao desaparecer esse amor deixou no lugar a enigmática mala...
Ludovico ouvia atento, curioso àquela história. Aceitou o convite para almoçarem. O rapaz há semanas não comia algo substancioso. À mesa, o distinto desconhecido continuou sua narrativa. Não parecia maluco! Como dissera antes, quando ela desapareceu lhe legou a dita mala. Sonhara que sua paixão estava naquela cidade. Os sonhos são respostas para muitas dúvidas, observou. Mas, precisava do obséquio do novo companheiro para transportar a preciosa e incômoda herança. O que trazia dentro dela? perguntou Ludovico ao senhor. A princípio ele respondeu que não sabia. Depois sugeriu que fossem jóias preciosas, barras de ouro ou simples folha de papel em branco... Porém, deve existir uma chave para abri-la? indagou o jovem. O homem só deseja aquilo que conhece, disse o velho. Ela levou a chave especial consigo...
Ao chegarem ao hotel despediram-se. Quem sabe ainda se veriam. Ludovico voltou no dia seguinte, contudo o hóspede já tinha partido. Deixara a mala e um bilhete para lhe serem entregues. No bilhete estava escrito: "Ame, sonhe e conseguirá abrir a mala. Não será fácil"... Aquele objeto parecia ter magnetismo. Não conseguira mais se desfazer dele. E como pesava o danado! Anoitecia. O sono começava a dominá-lo. Repousou a cabeça sobre a mala. A estação estava vazia. Parecia ouvir passos, parecia ouvir do interior da mala: Ludovico está amando...
4
Ludovico está amando,
Todos sabem desse amor,
Só esse amor que não...
Amor que se torna imenso,
No frágil ser que Ludovico é,
Ao coração a disparar...
Ludovico tem medo de revelar-se,
E esse amor dar de ombros,
Olhá-lo com indiferença,
De incômodo julgá-lo...
Ludovico forja encontros,
Para com esse amor ficar momentos,
Mas esse amor não aparece,
E Ludovico volta só...
Ludovico não dorme a contento, sonha,
Pressagia que esse amor vai viajar,
Teme que esteja escapando,
Descoberto seu sentimento...
Ludovico fez a mala e decidiu segui-lo
Num barco de papel, a pé, num simples olhar,
De carona num pássaro errante,
Enfrentado perigo dos mares, da chuva, do vento,
Que no tempo há...
Ludovico de sobretudo está aflito,
Esse amor partiu sem avisar,
Levou consigo a certeza,
De Ludovico nunca mais amar..
Do livro Baixada Erótica Ou Não!-2008-
Pablo Ribeiro.