O CORAÇÃO E OS SENTIMENTOS

Quando, na antiguidade, se descobriu que a base do processo vital nos animais é a circulação sangüínea e que o principal órgão do aparelho circulatório é o coração, atribuiu-se a esse órgão também o status de centro da vida afetiva, cognitiva e metafísica do ser humano.

As funções de músculo responsável pelo bombeamento do sangue – através dos movimentos de sístole ediástole (contração e dilatação) – para todo o corpo foram acrescidas, simbolicamente, das de sentimentos, pendores, transcendentalismo e de vaticínio. Grosso modo, diríamos que, do ponto de vista sócio-cultural, o coração usurpou funções específicas do cérebro.

O cérebro, na visão do senso comum, tem, além das funções neurofisiológicas, a responsabilidade pelas ações relativas à razão, ao pensamento e à inteligência, sendo despojado de todas as suas funções ligadas aos sentimentos e emoções.

O coração tornou-se o principal instrumento a serviço dos manipuladores de emoções: especialmente os galantes ou apaixonados, os poetas, os músicos, os sacerdotes e os políticos – É evidente que não consideramos aqui apenas o lado pejorativo do termo manipular, visto que há casos de manipulação saudável de sentimentos (como a música e a poesia, por exemplo).

Quantas vezes ouvimos algo do tipo “coração despedaçado”, “coração mole”, “coração de pedra”, “coração de mãe nunca se engana”, “bom coração”, “mau coração”, “abrir o coração”, “coração vagabundo”, “coração insensível”, etc. O amor e o ódio, os dois sentimentos extremos do ser humano, têm sido cantados e decantados em prosa e verso, através dos tempos como resultados de atividades do coração.

Rubem Alves, na crônica “As Razões do Amor”, atribui a Pascal a célebre frase: “o coração tem razões que aprópria razão desconhece”. Jair Rodrigues encantou o público na década de 60 com uma canção que iniciava com os seguintes versos: “prepare o seu coração/pras coisas que eu vou contar...”. Alceu Valença, na década de 80, gravou uma música que faz referência ao eterno mundo sentimental: “a gente se ilude dizendo que não há mais coração”. Aroldo Pereira escreveu que “as coisas do coração também fazem parte da revolução”; Fernando Pessoa ao definir que “o poeta é um fingidor” chamou todo o conjunto de emoções do homem de “comboio de corda que se chama o coração”; Carlos Drummond de Andrade resume a questão do sentido cognitivo e perscrutador atribuído ao órgão cardíaco, no verso “para que tanta perna, meus Deus, pergunta meu coração”; Wagner Rocha fala da falta de perspectivas na vida: “um homem vazio/um coração vazio/ um vazio vazio”.

Diante de uma situação entendida pelo cérebro como sendo de risco ou de intensa emoção, o organismo se prepara para ações extraordinárias, seja fugir, lutar ou extravasar emoções. Nessa preparação orgânica o primeiro sinal visível está no funcionamento do coração: o órgão precisa trabalhar com mais intensidade para proporcionar maior rapidez na circulação e oxigenação da corrente sangüínea e conseqüentemente possibilitar maior liberação de energia para a ação.

Certamente, o fato de ser o músculo que primeiro reage às emoções sentidas pelo cérebro, possibilitou ao senso comum, por analogia, transpor a significação do coração da dimensão física e fisiológica para o simbólico – do concreto para o abstrato e metafórico. Atualmente, séculos e séculos depois de descoberto o coração e suas funções, há quem, no dia-a-dia, o associe de imediato ao plano emocional sempre que a ele se refira, e há também os que o cantam e o poetizam para encantar.