Como reportar o abstrato e a fé?
Rapaz ainda, no tempo em que rapaz era um adolescente mais crescido, aos meus dezoito anos fui passageiro quase que diário do trem da Central do Brasil, entre a estação de Nova Iguaçu e Dom Pedro II, isto no Rio de Janeiro, e uma das minhas diversões era ouvir as manchetes cantatas pelos jornaleiros, que já pela madrugada iniciavam a venda dos exemplares do “Luta Democrática” ou então do “O Dia” retratando am mazelas sociais, que nem por isso acabaram. Eu iniciava na imprensa como colaborador de uma revista de humor chamada “Urubu”, que já na sua quinta edição deixou de circular, censurada por sua forte dose de humor-crítico, em uma época de estado de exceção.
O trem de ferro sacolejando abrigava vendedores de tudo, e até o “frei” Onofre vendia santinhos de papel em benefício a uma obra social que juridicamente não existia, mas de fato sim. A obra social era sua pessoa física de pobre homem, obeso, trajando uma batina suada e surrada, com o hálito denunciando que já tomara alguns copos de vinho antes de entrar em sua aventura ferroviária. Ele morava em um fétido quarto de aluguel na cidade de Nilópolis.
Como virtude tinha um coração grande, não só pela doença de chagas contraída na zona rural de Teófilo Otoni, cidade mineira onde nascera filho de mãe solteira, mas pela exposição sumária do seu lado humano, quando ao chegar na estação final desembarcava e era de imediato cercado de homens e mulheres, esfarrapados, que viviam embaixo das imponentes marquises da Avenida Presidente Vargas.
“Frei” Onofre, como o ritual de uma celebração, antes de sua jornada passava em um barzinho “pé sujo”, em uma rua dos fundos do ex-Ministério da Guerra, e de batina mesmo tomava uma “branquinha”, dose que nunca lhe era cobrada pelo português dono do bar, que ainda lhe oferecia um tira gosto. Certa ocasião até o pediu para abençoar o estabelecimento com direito a Pai Nosso e Ave Maria, em um momento que os “bebuns” que sobravam da madrugada tiveram a oportunidade de fazer o sinal da cruz. Se alguém disser que o português era burro ou inocente ao aceitar que um “frei”, que não tinha convento e nem capela por ele intercedesse em orações, se engana. O patrício bem sabia quem era o Onofre Venerando de Jesus, nome de batismo deste “santo homem”. Era uma questão de fé!
Que religioso estranho em seus hábitos era esse? Com passos lentos percorria a pé a mais larga avenida do Rio de Janeiro, no trecho que vai da Estação Pedro II a Candelária, em uma jornada que iniciada por volta das seis da manhã se alongava por duas a três horas? A cada parada era abordado por um daqueles moradores de rua, que já o conheciam, e que lhes oferecia cigarros (Onofre não fumava), pagava pasteis e bolos com refresco de laranja ou chá mate, vendidos em carrinhos ambulantes, e invariavelmente deixava um trocado com alguns daqueles moradores de rua, para que a noite tomassem um “cobertor de pobre”. Cachaça mesmo, com o que os mendigos aquecem o corpo.
Naquele percurso distribuía quase tudo que ganhava no trem. Tal como “os lírios do campos” não se preocupava com o dinheiro, pois se acabasse ia até a praça Quinze de Novembro, e lá vendia mais alguns santinhos na travessia de barca Rio x Niterói, onde também tinha fiéis colaboradores..
Estávamos no ano de 1965, e havia vinte anos que no Brasil tinha sido fundado um cisma católico, com o nome de Igreja Católica Apostólica Brasileira, fruto da excomunhão do bispo de Botucatu (SP), Dom Carlos Duarte Costa, que passou a ser chamado de “Bispo de Maura”, e que para constituir clero arrebanhou ex-seminaristas, umbandistas, beatos e afins, os ordenando padre e sagrando bispos e espalhando pelo país uma doutrina católica liberal que permitia o casamento de desquitados.
Havia sido iniciado um novo tempo de reflexão sobre a ordem abstrata do sacerdócio. “Frei” Onofre (coloco entre aspas, pois entendesse que frei ou frade deve ser conventual, o que não era o caso) e mais do que isso; era bispo sagrado por um bispo que foi sagrado por outro bispo que havia sido sagrado por Dom Salomão Ferraz, este último o primeiro bispo da Igreja Católica Apostólica Romana, casado, pai, avô e bisavô, que teve sua sagração episcopal “ilícita, porém válida” reconhecida pelo Papa João XIII, nos anos sessenta por ocasião do Concílio Vaticano II, conhecido como “Concílio Ecumênico”. Portando, de são consciência ninguém podia (e nem hoje pode) afirmar que este ou aquele, que estivesse ou estiver trajando uma batina, se tratasse ou se trate de um “falso padre”.
No início dos anos setenta eu novamente embarco no trem, o jornaleiro surge gritando “Falso padre preso no trem da Central”, e estampada uma grande fotografia do Onofre algemado... Preso, crucifixado e martirizado pela burrice ou ma fé de um agente de polícia, que freqüentador de missas dominicais não havia percebido que Cristo não está na cruz ou no beco estreito da teologia, mas antes transita por largas avenidas com diversos nomes. Burrice compartilhada por repórteres que transformaram em estelionato uma ação “robinhoodiana” voluntária. Às vezes nos falta de ler além dos registros policiais.
O jornalista David Nasser, na época escrevendo para a revista “O Cruzeiro”, dedicou a sua página assinada ao “frei” Onofre, e resumia a reflexão em uma pergunta: Que pecado cometeu o nosso frei Onofre? E o escreveu sem aspas!
No mesmo dia em que as manchetes dos jornais alardeavam sua prisão, “frei” Onofre embarcava no mesmo horário de trem e voltava a sua rotina de vender santinhos, tomar o “café branquinho” no bar do português, rogar benções, e comungar com seus desafortunados irmãos. Sua prisão durou apenas o tempo das fotografias e do escândalo, como se fosse algo encomendado por alguém ou algum clero incomodado. Sua presença ao vivo, no trem e entre centenas de exemplares de jornais com sua foto estampada, o faziam mais notado e era o seu desmentido a imprensa sensacionalista.
Tive a oportunidade de entrevistar “frei” Onofre nos anos oitenta, em Contagem, MG, onde estava vivendo com a que dizia ser primeira mulher de sua vida, e como sempre em uma vila de quartos minúsculos. Nesse tempo vendia seus santinhos na capital, ainda de batina, e freqüentava o bairro do Bonfim, em Belo Horizonte, bairro de prostituição plebéia de onde resgatou a sua amada!
O “frei” morreu dias depois de “coração grande”, pois a doença de chagas não o perdoou. Mas ele em largo sorriso nos seus beiços mulatos havia me confessado: “Eu perdoei aquele policial, mas principalmente os jornalistas que caíram em uma cilada”. Questões de origem abstrata e de fé são ciladas. Por isso o repórter e o redator devem buscar todos os ângulos da notícia e a manchete certamente não seria “Falso padre preso...”, mas “Frei Onofre preso...” Pois como reportar o abstrato e a fé de cada um?